Foto: Angop |
Tomei conhecimento do anúncio feito por vossa excelência quanto à instituição de um prémio para a literatura feita em línguas nacionais em Angola, aquelas que heroicamente resistem há séculos à hegemonia institucional e institucionalizada do "monstro" e pouco dialogante no campo-intercultural de nome língua portuguesa.
É realmente louvável este gesto sob o ponto de vista da sua motivação, que é fomentar a valorização das línguas e com isto a intrínseca virtude da valorização cultural.
Já não estou tão de acordo quanto à estratégia do ponto de partida. Premiar indivíduos não é nem sustentável nem reflexo de um diagnóstico assertivo da problemática das línguas nacionais de matriz bantu e pré bantu.
Há que criar as bases, começando por concluir o estudo encomendado há mais de cinco anos a académicos africanos para a HARMONIZAÇÃO das grafias.
Embora concordemos com a axiologia segundo a qual a escrita de uma língua é algo artificial, se virmos o fenómeno linguístico como processo de aquisição inconsciente e reflexivo, uma vez que o natural da aquisição de uma língua ocorre por meio da imitação e da repetição, também não estaremos a afiançar nenhum dislate se advogarmos que a codificação/normatização é determinante para impor uma língua como factor de aprendizagem sustentado pela cientificidade.
Qual é afinal a posição do Estado angolano relativamente à dualidade ortográfica que nos "divide" entre católicos e convencionalmente bantus, com toda a dispersão que isto representa? Irá o júri optar pela norma do Instituto de Línguas Nacionais ou ficará em cima do muro? Iremos escrever "Kanjala" (pequena fome, que remete para um eventual episódio de estiagem no passado, onde o prefixo "ka" indica ora diminutivo ora depreciação) ou "Canjala" (conforme legado do Ministério da Administração do Território do governo passado, onde o "ca" não tem significado outro que não a contumácia jurídica de um povo que através dos seus representantes se apegou em decretos do regime colonial 40 anos depois de conquistar a independência)? Escreveremos "Kwanza" ou "Cuanza"?
Exma senhora ministra, pode parecer ingratidão, vindo de quem já embolsou da instituição que a senhora dirige um montante de 593 mil kwanzas no ano de 2012, pelo Prémio Provincial de Cultura e Artes, na categoria de investigação em ciências sociais e humanas, pelo contributo que vem prestando na divulgação da língua e Cultura Umbundu, através do conto e das novas tecnologias de informação comunicação. Mas impele-me a consciência patriótica e de estudioso para alertar enquanto é ainda cedo. Mais sustentável será investir na investigação como ponto de partida e não já na premiação de indivíduos.
Criando as bases, teremos frutos a médio e longo prazos. O ensino das línguas nacionais ganharia alento para sair da letargia. Já premiando indivíduos, teremos presença cíclica em manchetes da imprensa e não muito mais do que isso. É que sem consistência nas bases, o próprio produto cultural premiado não encontrará depois aptidão intelectual na sociedade para a devida descodificação e multiplicação.
Reconheço que a condição social dos artistas é tudo menos confortável e que um prémio é sempre um incentivo ao génio criativo do artista e também à conta bancária. Mas no campo das línguas nacionais, o nosso estágio aconselha ainda arrumar a casa.
Esta é a opinião de quem por outro lado reitera a palavra no sentido de alimentar o sonho da chegada do dia em que escrever em linguas nacionais não será mais um caminhar numa vereda em que tudo se permite e não há certeza do correcto e do não correcto. Aí, sim, prometo escrever em Umbundu contos originais e recolher da nossa tradição oral, assim como dar aulas na língua de que sou nativo, com ou sem prémios. Ainda era só isso. Obrigado
Gociante Patissa (escritor e linguista)
Baía Farta, 16 Dezembro 2017 | www.angodebates.blogspot.com | www.ombembwa.blogspot.com
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