Adorada por mulheres que viam nela um ícone da ascensão feminina na vida, a
Comissária era ao mesmo tempo alvo de intrigas. Intrigas da concorrência, mas
também de alguns ressabiados. Destes há sempre. Era acusada de impingir ideias
de brancos e desprezos lá da China à nossa cultura africana, como aquilo de
impedir que as padarias familiares se prestassem à cozedura de filhos na quantidade
que bem entendessem. A má influência só podia derivar do nível académico da
chefe, pois estava visto, segundo a sabedoria popular moderna naquele meio
difundida, muito estudo na cabeça de uma mulher faz mal. E nesse quesito a
chefe tinha o Ensino Médio, numa comuna em que o maior nível findava na sexta
classe.
Média de estatura e abonada na massa corporal, não tardou a ser alcunhada
de «Superfofinha», no que pode ter contribuído o seu estilo de vida arisco.
Rapidamente as informações foram despachadas à direcção provincial para
verem a sua comuna livre de mulheres que odeiam homens, quando eram estes, mais
do que aquelas, quem suportava no ombro o peso da revolução e da guerra. Se
ainda os kimbundu[1], que mandavam naquilo
tudo, diziam no provérbio que «Tanga
imoxi, utuxi; mona umoxi umba[2]», assim já quem
pensava uma simples Comissária que era para mandar na tabuada da cama dos
outros?!
Mas se o caro leitor me permite um toque de justiça neste emaranhado de
acusações, aqui recorro à reminiscência para ilustrar o único caso que
despoletou tudo e estava a ser empolado, ainda do tempo em que era só vice. Foi
assim:
— Camarada-Vice! Camarada-Vice! Você, que é mulher, acha que a minha esposa
vai sobreviver?
— A tua esposa está muito mal, camarada. Continua em coma profundo na
reanimação.
— O que estão a fazer é certo?! Vê só, Camarada-Vice, vê só! Desde anteontem
que não me deixam chegar perto da mulher. Desconfiam de quê? Será que o amor
faz mal?
— É preciso ter calma e deixar os técnicos fazerem o trabalho médico. Ela
está grave…
— Mas, então a minha mulher que passo a vida a lhe ver nua, hoje vai ter
vergonha de me ver só porque está grave? Vai esconder mais o quê?
— Tem que confiar no tratamento, homem! E como está o bebé?
— E eu lá só homem de um filho por barriga? São gémeos, casal!
— Estão bem?
— Está tudo! Aquela camarada está a lhes tomar conta como mãe. Obrigado!
— Ainda bem. E não está a ser fácil mobilizar quadros para este papel de
família substituta no vosso caso. Umas camaradas estão colocadas em vossa casa
com outros filhos menores, as demais aqui de plantão a cuidar dos
recém-nascidos, já sem falar da mãe que está nos cuidados intensivos.
— Obrigado, Camarada-Vice, a Família e Promoção da Mulher vai receber
subsídio da mão do Poderoso. Até ainda estou alegre só de olhar para os meus
bebés. A camarada já viu o instrumento do menino? Se me sair eu, como pai, aos treze
anos já vai acompanhar a namorada na consulta de gravidez.
— Isso também seria demais, ó camarada!
— Mas demais como, Camarada-Vice?! Eu falo mesmo: pode faltar família,
trabalho, dinheiro, pode faltar tudo, mas sou muito homem! Tenho equipamento
para isso! Grupo «O»[3]. Até
não precisa esperar o fértil na fábrica da mulher!
— Na primeira
complicação de gravidez ectópica, ainda foi de
quantos
meses?
— Seis.
— E o irmão
mais velho?
— Nove.
— Estás a ver?
Procurem pensar no planeamento...
— Ela não
aceita!
— Não?!
— É confusão.
— E outros
métodos?
— Ela é mesmo
assim; mínimo toque, já fica grávida.
[1] Grupo
etnolinguístico da região abaixo do Rio
Kwanza, que inclui as
províncias de Luanda, de Kwanzas
Norte e Sul, e de Malanje.
[2] Ter um só pano equivale a andar nu, um só filho equivale a
não ter nenhum (provérbio Kimbundu recolhido por António de Assis Júnior).
[3] Está
por se saber a paternidade crença segundo a qual aqueles que pertencem ao grupo
sanguíneo O são de fertilidade infalível. Então, mesmo sem buscar confirmação
médica, aquele que faz muitos filhos ou
que tenha fracassado na tentativa de um aborto iria reivindicar-se como
sendo daquele grupo sanguíneo.
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