segunda-feira, 3 de julho de 2017

Crónica | Criar para quê?

Uma das vantagens de fazer parte da lista de contactos de Adão Filipe é beneficiar da sua multifacetada alma: radialista, jornalista, locutor, director de rádio, produtor musical, gestor de carreiras, compositor e director artístico. O efeito colateral mais directo é partilhar as mais fresquinhas novidades musicais angolanas e não só.

É claro que nem sempre estamos de acordo, o que só pode ser saudável. Num passado relativamente recente, fui dos que se simpatizaram com a corrente oposta ao parasitismo – na ausência de uma palavra mais simpática –, onde talentos da nova geração passaram a concentrar a sua energia no garimpo de sucessos dos anos 70/80 para regravar, correndo-se o risco de não deixarem, estes mesmos jovens, legado quase nenhum do seu potencial criativo. Já sem falar da deturpação por falta de domínio das línguas nacionais. Um receio de resto que encontrou na pessoa do mais-velho Elias Dya Kimwezu o eco mais legítimo, várias vezes vítima de ultrapassagens pela direita por um mercado algo míope.

O amigo Adão, na linha do que também defendeu o conceituado Dionísio Rocha, levava a abordagem para uma leitura universalista, isto é, para a necessidade de se reorganizar o papel das instituições de defesa dos direitos autorais, uma vez que em qualquer parte do mundo a interpretação é igualmente uma faceta importante da arte performativa, pelo que o intérprete não pode ficar refém da inexistência deste segmento que tem como fim monitorar normas que levem o criador a embolsar os proventos que lhe são por direito.

Há dias, do cabaz de novidades fiquei a ouvir uma versão da música de Maya Cool, dos anos 90, que fala da vergonha de alguém que andou por Portugal, supostamente a estudar, mas estagnou na fantasia de ser parente de ministros e diplomatas. A versão é de L’Vince. Curiosamente, já o tinha visto no dia anterior, via TPA2, em “covers”. O rapaz tem a música nas veias, articula bem, brilhou no The Voice Angola. Naquele jeito conciso das redes sociais, respondi: “reedito o meu receio de algum mau encaminhamento dos nossos novos artistas que, depois de conhecer os holofotes, colocam de parte a criação para o caminho fácil da interpretação. O miúdo até tem potencial, mas por este caminho...

Para ser franco, ficou-me uma sensação insossa quanto ao produto final da versão daquele tema do Maya. L’Vince esteve abaixo do seu record, aqui para usar um cliché desportivo. E é aí que entra a perspicácia de um Adão que tem uma apurada sensibilidade, não só do que se produz, mas também dos hábitos de consumo do seu interlocutor.

Propositado ou não, instantes depois recebo uma balada da música “inocente” (kizomba original de Paulo Flores), na voz de Dino Ferraz, jovem de Luanda que também já venceu o festival da rádio LAC, uma das montras mais sólidas da música angolana. Harmonia, ritmo, timbre, coros, tudo impecável em quatro sublimes minutos. Só sei que já passam seis dias, e ainda não tirei o leitor do carro da opção “repeat”. Só dá Dino Ferraz.

Avisem o kota Paulo Flores, ele não perderia nada com a inclusão daquela versão no novo disco que eu sei que está a preparar para sair pela LS Republicano. Há realmente gratas surpresas, mas que tenhamos uma indústria com mais interpretações do que produção original, aí já não poderão contar com o meu voto. Ainda era só isso. Obrigado.

Gociante Patissa | Aeroporto Internacional da Catumbela, 03 Julho 2017
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