quinta-feira, 20 de julho de 2017

Conto | E num instante, toda a sala é cacos

Tendo dedicado uma considerável fatia da sua vidinha a plantar árvores, e já conformado com a incapacidade de algum dia chegar a publicar algum livro, o cidadão Estrada sentia-se próximo da meta. Faltavam-lhe todavia dois degraus. Disso não lhe restava a menor dúvida: fazer filhos (mas para tal era preciso antes casar, e muito mais antes disso… arranjar alguém para casar) e aumentar o grau académico.

Estrada era bem dotado em todos os sentidos e talhado a transformar o sacrifício em sorte. Casou-se antes dos 40 anos. Conquistou duas bolsas de estudo para licenciatura num país à sua escolha. Como espectável de alguém meticuloso como só ele, Estrada esposara uma beldade do seu nível, o que facilitou a fazer bom uso da outra bolsa. Por acréscimo, a moça era daquelas que prestam uma homenagem ao cosmos pelo simples facto de existir.

A lua-de-mel acabou sendo um trampolim na saída para o doce exílio. Deixavam para trás o aconchego dos familiares, a boa comida da terra, o parentesco dos mosquitos, enfim, aquele conjunto agridoce que reforça o sentido de pertença ao nosso chão. Seriam só quatro anos. Para trás ficava também a boa reputação profissional do compatriota Estrada, pelo excelente trabalho que levara a cabo na gestão dos recursos humanos.

A estabilidade da empresa ficava a dever-se a ele. Vezes mil, Estrada teve de arregaçar mangas e mediar ciclos de desentendimento entre as duas cabeças da sociedade. O Dr. Caminho, médico, e o Dr. Distância, formado em relações internacionais, tinham uma relação que chegava a lembrar o leão e o mabeco). Morava em Estrada a voz e o rosto da conciliação. Sobreviveria a empresa à sua ausência? A preocupação agora era outra.

Marido e mulher fizeram, mãos sobre a bíblia, um voto de fidelidade e honestidade. Dariam o máximo para não atrapalhar os estudos e assim regressar à sua terra dentro do normal que eram quatro anos. Tudo o resto era aprendizagem, literalmente.

O mês era Novembro. Entre Kunene e o destino havia uma diferença de 33 graus celsius, um frio tal que dava até preguiça na hora de tirar a roupa e vestir-se de amor feito. Ir às compras era outro martírio. Da varanda do apartamento admiravam a vida que desfilava na avenida. Mães empurrando carrinhos de bebé, executivos acoitando-se em copos de chá comprados ao quiosque, chinês apressado para abrir a barraca de fast food, esquilos posando para a fotografia do turista, árvores de tronco nu, lençol de neve sem fim.  

Estrada levara até então uma vida tão focada, mas tão focada mesmo no trabalho que do sexo oposto entendia o equivalente a um bago de feijão. E não tardou a insegurança. Havia sempre uma semana em cada mês que julgava, desesperado, que o lar iria ruir. Ela devia estar de olhos em outro homem, que escolhera a mulher errada. No primeiro mês não disse nada à esposa a respeito. No segundo mês orou forte para que quem quer que fosse o ladrão do coração da sua amada mudasse de ideias ou então – que lhe perdoasse Deus! – ao menos tivesse um acidente fatal.

Ao terceiro mês passou a ir buscar a mulher à universidade, a beijar-lhe os pés no momento em que estes saíam da sabrina. Passou a levar o matabicho do jeito que viu na novela. Já iam ao oitavo mês, e a seu ver as causas da insegurança repetiam-se. Foi então que entendeu solicitar uma audiência com a entidade religiosa mais próxima.

Eminência, preciso da vossa intercessão. É o meu lar. Namoramos mesmo bem, noivamos ainda melhor, mas ultimamente está assim. E é quase todos os meses, o que me preocupa. A dama anda uns dias deprimida. Pequena coisa que pergunto, já lá está ela com vontade de chorar, irrita-se até por existir o pôr-do-sol. Eu sei que viver no estrangeiro não é fácil, mas só que a ansiedade e a insónia dela já… Às vezes lhe falta apetite, às vezes come demais – oh, Eminência, isso não lhe vai mexer na saúde? Tento organizar estudo em grupo com ela, mas ela demonstra falta de concentração, diz que está cansada. Não sei se é do clima, se é da saudade ou da comida. É por isso que desconfio…

O anfitrião sorriu, fez-lhe festinhas na testa, coçou-lhe a cabeça e disse: Oh, meu filho, fosse eu o teu professor de biologia, estarias reprovado na matéria de TPM. Chegado à casa, pediu perdão à esposa por todas as vezes que foi inconveniente. Beijaram-se e por pouco não se descascaram dos tecidos ali mesmo na varanda, tão ardentes de desejo. 

Cada Natal celebrado anunciava um ano académico vencido. Certo dia receberam um telefonema de natureza profissional. Na verdade foram dois com o mesmo fim. Primeiro o Dr. Distância, a seguir o Dr. Caminho. A firma enfrentava um impasse devastador e os sócios, esgotadas todas as tentativas de resolução intramuros, convenceram-se de que salvar a empresa passaria pela sabedoria do senhor Estrada. E viajaram para o estrangeiro em busca de mediação. Estrada, que conhecia o projecto melhor do que ninguém, aceitou recebê-los em sua casa. Hospitaleira, a esposa preparou uma ceia. Mesa posta. Já só faltava meia-hora para a chegada dos hóspedes.

A mulher estava naqueles dias, razão pela qual o homem não conseguia relaxar de todo. Arrumava-se ela para a ocasião. À chegada, o Dr. Distância e Dr. Caminho foram acolhidos por Estrada com piadas na ponta da língua, seu isco favorito para amenizar o ambiente tenso que antecede a resolução de conflitos. Nisto surge disparada a esposa do quarto, recolhe os dois pratos de porcelana postos para os hóspedes e arremessa-os violentamente contra o chão. E num instante, toda a sala é cacos. Incrédulos era pouco para descrever o estado dos hospedes. NUNCA MAIS APAREÇAM AQUI! Imperava a dona de casa num tom inusitado a dar para a súplica. A que propósito vinha tanta fúria?

Não havendo clima possível de emendar, os visitantes partiram. A mulher fechou-se no quarto a chorar. O marido anunciou divórcio. Ela não reluctou, impôs apenas uma condição: como faltava pouco para a outorga, só quando retornassem desfariam os votos e na presença das pessoas que testemunharam o casamento. E assim ficou combinado.

O ancião da família deu voz ao marido, a parte lesada. Ele falou do trauma pelo vexame que passou, pois uma tensão pré-menstrual não justificava a enorme falta de respeito demonstrada pela esposa. Foi um sinal de como não poderá contar com ela para os desafios de uma auspiciosa carreira profissional. A audiência anuiu.

Depois foi a vez da mulher. Com lágrimas no rosto, contou que naquele dia notara algo estranho na posição dos pratos e copos na mesa, que já no quarto encontrara o frasco de raticida semi-aberto. Neste instante o marido abaixou a cara de vergonha. A mulher acrescentou que se sentia traída, uma vez que o resultado das autópsias desembocaria nela. 
Gociante Patissa | Lobito, 20 Julho 2017 | www.angodebates.blogspot.com
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