Tendo
dedicado uma considerável fatia da sua vidinha a plantar árvores, e já
conformado com a incapacidade de algum dia chegar a publicar algum livro, o
cidadão Estrada sentia-se próximo da meta. Faltavam-lhe todavia dois degraus.
Disso não lhe restava a menor dúvida: fazer filhos (mas para tal era preciso
antes casar, e muito mais antes disso… arranjar alguém para casar) e aumentar o
grau académico.
Estrada
era bem dotado em todos os sentidos e talhado a transformar o sacrifício em
sorte. Casou-se antes dos 40 anos. Conquistou duas bolsas de estudo para
licenciatura num país à sua escolha. Como espectável de alguém meticuloso como
só ele, Estrada esposara uma beldade do seu nível, o que facilitou a fazer bom
uso da outra bolsa. Por acréscimo, a moça era daquelas que prestam uma
homenagem ao cosmos pelo simples facto de existir.
A
lua-de-mel acabou sendo um trampolim na saída para o doce exílio. Deixavam para
trás o aconchego dos familiares, a boa comida da terra, o parentesco dos
mosquitos, enfim, aquele conjunto agridoce que reforça o sentido de pertença ao
nosso chão. Seriam só quatro anos. Para trás ficava também a boa reputação
profissional do compatriota Estrada, pelo excelente trabalho que levara a cabo
na gestão dos recursos humanos.
A
estabilidade da empresa ficava a dever-se a ele. Vezes mil, Estrada teve de
arregaçar mangas e mediar ciclos de desentendimento entre as duas cabeças da
sociedade. O Dr. Caminho, médico, e o Dr. Distância, formado em relações
internacionais, tinham uma relação que chegava a lembrar o leão e o mabeco).
Morava em Estrada a voz e o rosto da conciliação. Sobreviveria a empresa à sua
ausência? A preocupação agora era outra.
Marido
e mulher fizeram, mãos sobre a bíblia, um voto de fidelidade e honestidade.
Dariam o máximo para não atrapalhar os estudos e assim regressar à sua terra
dentro do normal que eram quatro anos. Tudo o resto era aprendizagem,
literalmente.
O mês era Novembro. Entre Kunene e o destino havia uma diferença de 33
graus celsius, um frio tal que dava até preguiça na hora de tirar a roupa e vestir-se
de amor feito. Ir às compras era outro martírio. Da varanda do apartamento
admiravam a vida que desfilava na avenida. Mães empurrando carrinhos de bebé,
executivos acoitando-se em copos de chá comprados ao quiosque, chinês apressado
para abrir a barraca de fast food,
esquilos posando para a fotografia do turista, árvores de tronco nu, lençol de neve
sem fim.
Estrada
levara até então uma vida tão focada, mas tão focada mesmo no trabalho que do
sexo oposto entendia o equivalente a um bago de feijão. E não tardou a
insegurança. Havia sempre uma semana em cada mês que julgava, desesperado, que
o lar iria ruir. Ela devia estar de olhos em outro homem, que escolhera a
mulher errada. No primeiro mês não disse nada à esposa a respeito. No segundo
mês orou forte para que quem quer que fosse o ladrão do coração da sua amada
mudasse de ideias ou então – que lhe perdoasse Deus! – ao menos tivesse um
acidente fatal.
Ao
terceiro mês passou a ir buscar a mulher à universidade, a beijar-lhe os pés no
momento em que estes saíam da sabrina. Passou a levar o matabicho do jeito que
viu na novela. Já iam ao oitavo mês, e a seu ver as causas da insegurança
repetiam-se. Foi então que entendeu solicitar uma audiência com a entidade
religiosa mais próxima.
Eminência,
preciso da vossa intercessão. É o meu lar. Namoramos mesmo
bem, noivamos ainda melhor, mas ultimamente está assim. E é quase todos os
meses, o que me preocupa. A dama anda uns dias deprimida. Pequena coisa que
pergunto, já lá está ela com vontade de chorar, irrita-se até por existir o
pôr-do-sol. Eu sei que viver no estrangeiro não é fácil, mas só que a ansiedade
e a insónia dela já… Às vezes lhe falta apetite, às vezes come demais – oh,
Eminência, isso não lhe vai mexer na saúde? Tento organizar estudo em grupo com
ela, mas ela demonstra falta de concentração, diz que está cansada. Não sei se
é do clima, se é da saudade ou da comida. É por isso que desconfio…
O
anfitrião sorriu, fez-lhe festinhas na testa, coçou-lhe a cabeça e disse: Oh,
meu filho, fosse eu o teu professor de biologia, estarias reprovado na matéria
de TPM. Chegado à casa, pediu perdão à esposa por todas as vezes que foi
inconveniente. Beijaram-se e por pouco não se descascaram dos tecidos ali mesmo
na varanda, tão ardentes de desejo.
Cada Natal celebrado anunciava um ano académico vencido. Certo dia receberam um telefonema de natureza profissional. Na verdade foram dois com o mesmo fim. Primeiro o Dr. Distância, a seguir o Dr. Caminho. A firma enfrentava um impasse devastador e os sócios, esgotadas todas as tentativas de resolução intramuros, convenceram-se de que salvar a empresa passaria pela sabedoria do senhor Estrada. E viajaram para o estrangeiro em busca de mediação. Estrada, que conhecia o projecto melhor do que ninguém, aceitou recebê-los em sua casa. Hospitaleira, a esposa preparou uma ceia. Mesa posta. Já só faltava meia-hora para a chegada dos hóspedes.
Cada Natal celebrado anunciava um ano académico vencido. Certo dia receberam um telefonema de natureza profissional. Na verdade foram dois com o mesmo fim. Primeiro o Dr. Distância, a seguir o Dr. Caminho. A firma enfrentava um impasse devastador e os sócios, esgotadas todas as tentativas de resolução intramuros, convenceram-se de que salvar a empresa passaria pela sabedoria do senhor Estrada. E viajaram para o estrangeiro em busca de mediação. Estrada, que conhecia o projecto melhor do que ninguém, aceitou recebê-los em sua casa. Hospitaleira, a esposa preparou uma ceia. Mesa posta. Já só faltava meia-hora para a chegada dos hóspedes.
A mulher estava naqueles dias, razão pela qual o homem não conseguia
relaxar de todo. Arrumava-se ela para a ocasião. À chegada, o Dr. Distância e Dr.
Caminho foram acolhidos por Estrada com piadas na ponta da língua, seu isco favorito
para amenizar o ambiente tenso que antecede a resolução de conflitos. Nisto
surge disparada a esposa do quarto, recolhe os dois pratos de porcelana postos
para os hóspedes e arremessa-os violentamente contra o chão. E num instante,
toda a sala é cacos. Incrédulos era pouco para descrever o estado dos hospedes.
NUNCA MAIS APAREÇAM AQUI! Imperava a dona de casa num tom inusitado a dar para
a súplica. A que propósito vinha tanta fúria?
Não
havendo clima possível de emendar, os visitantes partiram. A mulher fechou-se
no quarto a chorar. O marido anunciou divórcio. Ela não reluctou, impôs apenas
uma condição: como faltava pouco para a outorga, só quando retornassem
desfariam os votos e na presença das pessoas que testemunharam o casamento. E
assim ficou combinado.
O
ancião da família deu voz ao marido, a parte lesada. Ele falou do trauma pelo
vexame que passou, pois uma tensão pré-menstrual não justificava a enorme falta
de respeito demonstrada pela esposa. Foi um sinal de como não poderá contar com
ela para os desafios de uma auspiciosa carreira profissional. A audiência
anuiu.
Depois
foi a vez da mulher. Com lágrimas no rosto, contou que naquele dia notara algo
estranho na posição dos pratos e copos na mesa, que já no quarto encontrara o
frasco de raticida semi-aberto. Neste instante o marido abaixou a cara de
vergonha. A mulher acrescentou que se sentia traída, uma vez que o resultado das
autópsias desembocaria nela.
Gociante Patissa |
Lobito, 20 Julho 2017 | www.angodebates.blogspot.com
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