Por Alberto Gonçalves, in Diário de Notícias, 12/10/14
Uma
última viagem na sua permanente vocação para agitar consciências, diz o anúncio
da Porto Editora. Um acto revolucionário, diz o juiz espanhol Baltasar Garzón.
Saramago vintage, diz o editor brasileiro do falecido escritor. Saramago no seu
melhor, diz o editor português. Uma obra divertida, diz Eduardo Lourenço. Tudo
isto a propósito de "Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas",
o dito romance inacabado de José Saramago. Na verdade, de romances inacabados
está o mundo cheio. Alabardas inaugura um género novo, o dos romances
praticamente por começar.
Não
é que não haja um livro: há, aliás com 135 páginas. Seis são notas do autor.
Cinquenta são textos de outros autores sobre o autor e o produto em causa. Dez
são índices, ficha técnica e diversos. Doze são desenhos de um antigo membro
das Waffen-SS. Sobram 57 folhinhas, impressas em fonte crescida e a dois (ou
três) espaços. Ninguém se deve admirar se, no mês que vem, publicarem os
últimos post-it que Saramago colou no frigorífico, em cinco volumes repletos de
ensaios alheios, bonecos para colorir e a oferta de uma echarpe em tons marrom.
Meia dúzia de críticos hão-de considerar estarmos perante um momento de ruptura
na cultura universal.
Num
certo sentido, Alabardas consagra de facto o estilo do Nobel caseiro, que em
vida fazia questão de anunciar, ele próprio, o carácter polémico de cada livro
antes mesmo de o livro chegar ao público. Um boa estratégia, até porque quando
o livro chegava ao público não acontecia nada de especial - excepto se o
público se chamava Sousa Lara. Devido a condicionantes óbvias, agora o anúncio
da polémica ficou a cargo de terceiros, mas o processo é idêntico e com uma
vantagem: se o hábito consiste em privilegiar a algazarra em detrimento do
conteúdo, desta vez o conteúdo quase não existe e a algazarra abunda. Saramago
vintage, de facto. E, desde que ignoremos os pechisbeques anexos, a minha obra
preferida dele. As outras não se liam em horas. Conto não ler esta em vinte
minutos.
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