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No Lobito,
contam-se aos dedos os restaurantes que sobreviveram à segunda república. O
calar das armas e a transição para a abertura do mercado abalaram economias e
hábitos de consumo. De sorte que, quando a paz não mais precisar da guerra para
se autodefinir, os humanos ter-se-ão transcendido a si próprios, digo eu.
As cidades são árvores que mantêm a
essência enterrada, enquanto galhos, folhas e frutos vão e vêm. O centro do
Lobito resume-se a duas ruas, a de entrada e a de saída, entre o bairro da
Caponte e a Zona Comercial. Só depois da Colina da Saudade se cruzam para o
Compão, a sul, à procura do bom pescado da Kabaia, ou para a ponta da Restinga,
a norte, onde a cidade se liberta na língua da praia, em geral para tirar
proveito da escuridão que o lugar regala aos casais.
O Gunga-Bar (cujo nome provém do
Umbundu "ongunga", sino) fica na rua de saída, resistindo a
quaisquer infortúnios, sendo um deles, o mais pesaroso, a morte do proprietário
por acidente rodoviário, há coisa de três anos. Guardo na memória a cena da
moça que tiramos do sono, às duas da manhã, em finais da década de 90 do século
vinte, para nos servir bebidas, numa breve fuga aos preços da discoteca ali
perto. O restaurante prestava-se ao desafio de servir vinte e quatro horas por
dia, muitas vezes à luz de poucas velas entre uma falha e outra da energia
geral, não dispondo de uma simples fonte alternativa.
Tem rosto moderno mediano, o que só
pode ter contribuído para maior fluxo de clientes. É um restaurante pequeno e
fechado, rendido a essas irreverências ocidentais de igualdade entre classes,
onde o cliente chega, como qualquer outro, serve a variedade que der, põe o bolso
a falar com a balança e ocupa a mesa. Só depois vem o garçon para o que se quer
beber.
Estava lá eu a almoçar em tempos. Às
tantas, entra um vigoroso septuagenário com duas raparigas, que tanto davam
para meretrizes como para netas suas com défice de decência no trajo apenas.
Ocupam uma mesa ao fundo, num canto entristecido pelos vidros fumados, onde
poisam objectos irrelevantes como sinal de demarcação territorial. Luwawa é um
farfalhoso intelectual Bantu, devolvido pela trama da história à sua cidade natal.
Bons filhos à casa sempre tornam, os não tão bons também, há quem também o
diga, e até mais previsivelmente, diga-se.
Há histórias de vida que revelam
fatalidade, quando a personalidade não se dissocia da etimologia do nome
atribuído pelos progenitores ou o adoptado do xará. Luwawa, por falar nisso, é
uma espécie vegetal odiada pelo seu fedor, o que, entretanto, não justifica que
os Ovimbundu torcessem, à partida, o nariz a toda uma espécie humana com tal
nome.
Velho Luwawa, de sorrisos largos
como o casaco e a gravata, é um acontecimento em pessoa, um poço sem fundo que
ninguém quer ter contra si. Talvez fosse por isso que, em se tratando de
self-service, foi-lhe dada, e por arrasto às muchachas, uma deferência incomum: serviu, pagou e deixou os três pratos
no balcão da balança, para serem pelo pessoal de serviço levados à sua mesa.
Bem, agora vou andando, que conheço
ateus, conheço cristãos. Para ambos, é sagrada a hora da refeição.
Gociante Patissa, Aeroporto 17 de Setembro, Benguela, 2 Agosto 2012
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