quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Crónica | Músico Kyaku Kyadaff dá aulas com guarda-costas?

O músico Kyaku Kyadaff volta a estar no centro de uma polémica. Desta vez, segundo denúncia do jornal Nova Gazeta, edição de 15/12, Eduardo Fernandes, que de profissão é também professor de psicologia, tem levado para a sala de aulas um guarda-costas, que ele chama de “agente”. O palco da cena é o Instituto Superior Politécnico Internacional de Angola (ISIA), em Luanda. Seria menos polémico se, no lugar de músico, o professor fosse um general com direito orgânico a guarda-costas?

Compositor e trovador de mão cheia, Kyaku vive o segundo ano a fio de uma carreira no auge e muito premiada. No ano passado, foi acusado de má-fé pela cantora Dircy Sil, por ter cedido o tema “paga que paga” à cantora Ary, que o regravou. Embora os arranjos fossem de Kyaku e Kamané, a música retrata, segundo a queixosa, as mágoas de uma relação amorosa pessoal. Talvez já o previssem, a versão de Ary viria a ter mais êxitos, vencendo até o Top dos Mais Queridos 2014, da Rádio Nacional.

Mas o que faria o professor levar uma pessoa estranha às aulas? Consta que não se trata de um guarda. Assim sendo, até onde vai o papel de um agente musical? Estas e outras questões impõem-se, no exercício dual de nos colocarmos no lugar do outro. Tentamos, sem êxito, ouvir a versão de Kyaku. Por outra, o que dizer da postura, digamos intrigante, dos estudantes? Pelo que se relata, não foi coisa de um dia apenas. Foi preciso esperar por um conflito com a direcção escolar para explodir via jornal?

Já diziam Steinberg and Sciarin que o espaço físico chamado sala de aulas, no qual são esperados o professor e os estudantes, está, por definição, isolado do resto da vida social. E porque é de gestão escolar que falamos, vale acrescer que a observação de uma aula planifica-se e tem roteiro próprio. Pelo que a presença de um intruso, mesmo que calado, mudo ou inominável, interfere na espontaneidade do estudante.

A direcção escolar, citada como condescendente, aparece ao mesmo tempo a demarcar-se. Mas o jornal vai mais longe. “A irregularidade foi confirmada pelo próprio músico, mas que desvaloriza, explicando que nunca encarou a presença do seu agente musical na sala como ‘incómoda’, porque os estudantes nunca se manifestaram e que só passou a fazê-lo por imperativos da sua profissão de músico.” Surreal! Parece a cena de um outro artista que levou a filha e um fotógrafo particular ao jantar da sua agremiação.

Sublinhemos esta passagem: “só passou a fazê-lo por imperativos da sua profissão de músico.” O que quer isto dizer? Que a profissão de músico sobrepõe-se à de professor, que o músico e seus acompanhantes gozam de imunidades no dia-a-dia, a ponto de subverter as boas práticas pedagógicas?

O autor destas linhas, que se opõe a determinados sinais de ostentação passíveis de beliscar o bem-comum, não tem entretanto problemas em reconhecer a grandeza de Kyaku (carácter, personalidade), natural de Mbanza Congo, província do Zaire, cujo talento atestou durante a convivência no Brasil, pela 6.ª Bienal de Jovens Criadores da CPLP 2013. O tímido Kyaku monopolizava a atenção da imprensa local, contrariando a própria direcção da delegação angolana, cuja noção de riqueza cultural ficava-se pelo oco dançante, com honras ao ku-duro de Madruga Yoyo e Cabo Snoop.

Parece-nos mais um quadro de incompatibilidades entre os holofotes do showbiz e a discrição e decoro do professorado. A sociedade tem de recordar que um músico não está acima do professor. Logo, defender como “normal” a presença de um “agente musical” numa sala em que se é professor de psicologia (e não música), chame-se a cidade Luanda ou Hollywood, só pode ser ingenuidade. O sensato seria suspender a docência e dar vez à agenda musical, que vai bem e se recomenda. E fica a questão de retórica: é possível viver-se só de música em Angola?
Gociante Patissa, Benguela, 17 Dezembro 2015
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