segunda-feira, 29 de abril de 2019

ENSAIO. Línguas nacionais, toponímia e identidade nacional


(*) António Fonseca | Programa Antologia, Rádio Nacional de Angola | 27.04.2019

Muito já se falou sobre a questão das línguas nacionais e, a ela associada, sobre a questão da toponímia e da identidade nacional. Como o tema não está esgotado, aqui está, pois, o Antologia para trazer subsídios ao debate que se impõe em torno da questão. Para tal, importará talvez elencar os diversos aspectos que se levantam, de modo a que, sobre cada um deles, possamos ir emitindo o nosso ponto de vista e talvez contribuir para que se faça luz sobre a questão.

1 – Quanto à questão de definir o que são ou quais são as línguas nacionais, no caso angolano, dissemos no último programa que, por exclusão de partes, as mesmas só podem ser as línguas gentílicas das comunidades socioculturais que habitam o território angolano, independentemente da sua territorialidade ou de serem transfronteiriças. Para nos posicionarmos ante a questão, partimos do Decreto Nº 77, de 9 de Dezembro de 1921, do Alto-comissário e Governador de Angola, José Mendes Ribeiro Norton de Matos, que estabeleceu o que passo a citar:

Artº 2º - Não é permitido ensinar nas escolas das missões línguas indígenas.
Artº 3º - O uso da língua indígena só é permitido em linguagem falada nas catequeses e, como auxiliar, no período do ensino elementar da língua portuguesa. & 1º - É vedado na catequese das missões, nas suas escolas e em qualquer relação com os indígenas, o emprego das línguas indígenas ou de outra linguagem que não seja a portuguesa (...)

Portanto, chegados aqui, com alguma razoabilidade, somos forçados a afirmar que o próprio Alto-comissário e Governador de Angola, José Mendes Ribeiro Norton de Matos, foi quem, por oposição entre as línguas indígenas e a língua portuguesa, definiu já em 1921 que as línguas indígenas são as línguas nacionais de Angola.

2 – Quanto à questão da Toponímia e Identidade Nacional, são dois aspectos que andam muito ligados. A questão que amiúde se coloca é a de se não deveriam ser mantidos os antigos nomes de localidades, de ruas e de avenidas e mesmo se as estátuas do período colonial não deveriam voltar a ocupar o seu antigo lugar. As opiniões dividem-se e verificamos que se vai impondo uma certa tendência de fazer ressurgir tais nomes. Ora, todos sabemos que a toponímia, os nomes de ruas e lugares, não são dados por mero acaso. São dados para exaltar um feito ou uma figura. Por esta ordem de razão, os heróis e feitos heróicos do colonizador não são os heróis nem os feitos heróicos do colonizado. Por outro lado, a toponímia visa cimentar valores e caucionar uma identidade. Por esta ordem de razão, de igual modo, a perspectiva do colonizado não pode ser a perspectiva do colonizador.

3 – No pós-independência a alteração dos nomes foi vista como “uma forma de marcar a vitória pela a independência e como afirmação da identidade africana dos angolanos independentes, há muito oprimida institucionalmente pelo colonialismo. Este era também um dos objectivos de movimentos como “Vamos Descobrir Angola” onde participaram figuras como Viriato da Cruz, António Jacinto e Luandino Vieira”[1] e, de um modo geral, dos grandes poetas da geração da Mensagem.

Perguntarmo-nos pois se faria sentido voltar a chamar Cidade de Salazar à Cidade de Ndalatando, ou se faria sentido voltar a chamar Cidade de Carmona à Cidade do Uíge? Cremos que não, pois estaríamos a homenagear aqueles que tanto dano causaram ao nosso povo e que nem na sua respectiva pátria merecem tal homenagem. Já agora, pergunto-me por que razão a Cidade do Namibe voltou a ser chamada de Cidade de Moçamedes. Será que se quis homenagear o tráfico negreiro, ou a reposição de tal nome terá sido apenas fruto da ignorância? Como dizia o escritor Pepetela, chamar Moçamedes ao Namibe equivale a chamar Salazar a Ndalatando ou Carmona ao Uige[2].

Para quem queira ouvir e portanto reflectir sobre a manutenção do nome de Moçamedes para a cidade do Namibe, importa dizer que o Barão de Moçamedes, em cuja honra foi no tempo colonial dado o seu nome àquela cidade, foi uma das principais figuras do tráfico de escravos em Angola. Senão vejamos:

a)     Barão de Mossâmedes (ou barão de Moçâmedes) foi um título de juro e herdade criado por carta régia de 13 de Agosto de 1779 da rainha D. Maria I a favor de José de Almeida e Vasconcelos, um militar e governador-geral de Angola. A propósito de Moçâmedes, pode ler-se no artigo Namibe, Cecil Rhodes, descolonização e o Barão de Moçâmedes, publicado na página ANGONOMICS[3].

b)     “O nome Moçâmedes é uma homenagem ao antigo governador-geral de Angola, José de Almeida e Vasconcelos Soveral e Carvalho, o Barão de Moçâmedes (ou Mossâmedes). Quando ordenou a exploração de terras a sul de Benguela em 1785, o Barão despachou o tenente-coronel Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado e o sargento-mor Gregório José Mendes e quando chegou à Angra do Negro – o nome pelo qual os portugueses conheciam a zona do porto do Namibe por ser um local de embarcação de escravos – rebaptizou o local como Porto de Moçâmedes em homenagem a José de Almeida e Vasconcelos.

José de Almeida e Vasconcelos, que antes de cumprir a missão em Angola foi um capitão-mor de sucesso na capitania de Goiás no Brasil, para onde foi enviado pelo Marquês de Pombal, chegou a Angola em 1784 e tinha entre as suas prioridades retomar o controlo metropolitano do comércio de escravos e das receitas aduaneiras inerentes ao comércio de pessoas que estava a ser dominado por comerciantes baseados no Brasil.

Durante o governo de José de Almeida e Vasconcelos, o Barão de Moçamedes, entre 1784 e 1790, o tráfico de escravos atingiu níveis recorde na colónia de Angola, como escreveu Joseph Calder Miller. Assim, retomar o nome de Moçâmedes é efectivamente homenagear um servidor diligente do colonialismo, sendo amplamente considerado como um servidor público de qualidade pelos serviços prestados para o império português; a causa que serviu jogou em muitos aspectos contra a causa dos povos de Angola.

Com o regresso ao nome colonial, Moçâmedes, passa-se a homenagear uma pessoa ligada à administração colonial em pleno período de vigência do comércio transatlântico de escravos, a principal actividade comercial e principal fonte de receitas para administração colonial em Angola.”

Pelas questões apresentadas acima, fica a ideia que a decisão de passar o nome da cidade do Namibe para Moçâmedes foi baseada em informação frágil uma vez que representa efectivamente uma homenagem a um homem cujas acções, por iniciativa própria ou por inerência das funções que desempenhava, o desqualificam para qualquer tipo de homenagem toponímica na Angola de hoje. Portanto, parece-nos ser esta uma questão para reanalisar...
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Biografia
António Antunes Fonseca nasceu no Ambriz em 1956. Licenciado em Economia pela Universidade Agostinho Neto, é diplomado em Estudos superiores especializados de políticas culturais e acção artística Internacional pela faculdade de Direito e ciências políticas da Universidade de Bourgogne, França.

É o actual PCA do Memorial Dr. Agostinho Neto, em Luanda. Dirigiu a Empresa Nacional de Discos e de Publicações desde 1982 e já dirigiu o Instituto do Livro e do Disco de 1983 a 1994. Iniciou a actividade jornalística na Emissora Católica de Angola, ingressado posteriormente na Rádio Nacional de Angola, onde desde 1978, realiza e apresenta o programa Antologia.

Membro da União dos Escritores Angolanos (UEA), foi co-fundador da Brigada Jovem de Literatura e da Associação Angolana dos amigos do livro. Publicou Raízes, Sobre os Kikongos de Angola, Poemas de Raíz e Voz, e Crónicas dum Tempo de Silêncio. Figura em algumas antologias e possui colaboração dispersa em alguns jornais e revistas luandenses.

(*) Texto escrito para o Programa Antologia, da Rádio Nacional de Angola, edição de 27 de Abril de 2019. Versão revista e editada pelo Blog Angodebates / com UEA. Foto: Angop


[1] Namibe, Cecil Rhodes, descolonização e o Barão de Moçâmedes, ANGONOMICS
[2] Pepetela, TEXTUALIDADES – Conversa com os Leitores – MAAN, Luanda, 2019
[3] Namibe, Cecil Rhodes, descolonização e o Barão de Moçâmedes, ANGONOMICS
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