sábado, 27 de fevereiro de 2016

Crónica | Uma década de ambivalências

Estava tenso, um misto de incompetente com impotente. Tinha a manifestar 14 passageiros, mas pareciam 14 mil, até para mim, que escrevo rápido à mão. O meu primeiro dia foi um trauma. Imagine você o que é ser lançado para um cenário de atendimento público sem treinamento ao menos sobre as ferramentas em uso.
 
Para além do colete reflector, do lugar ao balcão e dos 60 minutos planificados para a tarefa, nada mais dominava. Tive de ser ajudado a preencher a papelada, à frente de todo o mundo, por um dos candidatos que derrotei nos exames de admissão (escritos e orais). Há como esquecer a nobreza de tal gesto? Sem que lho pedisse, estava ele a tutorar precisamente quem ficou com o emprego com que há muito vinha sonhando.

Eu desde pequeno que sonho com muita coisa nesta vida. Com aeroportos é que não me lembro. De sorte que a minha relação com o sector, que no próximo dia três de Março assinala o nono aniversário, dá-se mais no espírito piloto-automático. Tenho, sempre tive, dos aeroportos a mesma percepção sombria que me ocorre dos cemitérios. Talvez pelas emoções de rotura entre quem parte e quem fica; talvez pela natureza “pronto a explodir” dos aviões; talvez pela vocação autoritária dos sistemas de segurança, enfim, há qualquer coisa de potencialmente lúgubre na aura dos aeroportos.

Em 2006, ao cabo de sete anos exercendo um pouco de tudo no ramo das ONG’s, acolhi com certo entusiasmo a ideia de trabalhar para um ente para-estatal. Aspirava, finalmente, curtir uma praia ao domingo e, ainda mais excitante, usufruir fins-de-semanas prolongados. Engano. Começava a odisseia de oficial de tráfego aéreo. “Como vai a vida? Continuas naquele emprego? Espero bem que não!”, escreveu-me uma ex-chefe um ano depois.  E eu continuava. Ironia.

Não há nada de comparável entre o sector da sociedade civil e o serviço de terra em aviação, desde logo porque no primeiro imperam a criação, a fertilidade dos debates e a natureza horizontal das estruturas hierárquicas, ao passo que no segundo, tudo gira em torno da lei da rotina. Para as mesmas coisas, nas mesmas circunstâncias, as mesmas reacções. Hoje, sou testemunha de grandes progressos na história da aviação cá, com realce ao rigor do Instituto Nacional da Aviação Civil na certificação de operadoras, o que levou à extinção de várias, mas também à redução de casos de acidentes. Louvo ainda a transição dos sistemas de check in, do manual para o electrónico.

Certa vez, tivemos um passageiro a mais na classe executiva. Tinha talão de embarque, mas não o manifestei. Escapou-me. Nestes casos, infelizmente, a reacção do pessoal de bordo, colegas por sinal, é a enxovalhar, sem ter em conta a tensão natural do balcão. O passageiro era o deputado Akwá. Tive de o mobilizar para ir na económica. Garanti que restituiria do meu salário a diferença. O deputado relevou sem o estrebuchar previsível de gente poderosa. Só aumentou a minha admiração por aquela estrela do futebol.

Já vai quase uma década de ambivalências. Empregador generoso, emprego nem tanto. Possibilidades de alicerçar o capital de prestígio, dando aulas ou integrando redacções jornalísticas não faltam, pelo que não me queixo da sorte. Prevalece a esperança de vir algo melhor dentro da casa, nem que seja até um dia antes da aposentadoria. 
Gociante Patissa, Aeroporto Internacional da Catumbela, 27 Fevereiro.2016
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