LIVRO DO MÊS | Sugerimos ao
leitor que pegue na obra O Homem que Plantava Aves, de Gociante Patissa, e
comece por ler o último dos contos, Porque é que a Cauda de Lagartixa Cai? Este
destoa do conjunto de estórias. É a voz de um contador de estórias anónimo, que
Gociante talha com o formão da língua portuguesa num produto literário novo.
Por José Luís
Mendonça, in revista África21, Nº 137, pág. 73/74, Luanda, Angola - Março 2019
A seguir, leia-se
A Lenda do Soberano Ndumba. Muito próxima da última estória, pela colagem ao
nativismo, difere dela pelo recurso descritivo que caldeia todo o livro. É o
que lemos neste trecho: “Concebo sipaio como milícia, um espécime rudimentar
criado pela autoridade colonial, mas cujo poder se cingia sobre as comunidades
indígenas, irónico instrumento de repressão de colonizados contra os seus
semelhantes.”
O leitor atento
pode constatar que certos recantos linguísticos trazem reminiscências do
refinamento discursivo de Óscar Ribas. Nessa conformidade, o valor literário
desta colectânea de contos não reside tanto no seu espectro linguístico, senão no
registo fonético e no desfile alegórico da praxis popular benguelense de que se
constrói a narrativa.
O Homem que
Plantava Aves, lançado pela editora Acácias nos dias 14 e 15 de Dezembro nas
cidades de Benguela e do Lobito, reúne 15 contos, de cuja leitura se extrai um
valioso repositório de usos e costumes da região de Benguela. Neste sentido,
esta obra é rica pelo seu pendor etnográfico. Como explica o autor, na nota
introdutória, “Temos em mãos uma colectânea de ficção com esparsas referências
autobiográficas do autor e do espaço de língua e cultura Umbundu, o que implica atravessar uma vez ou outros temas complexos, como as
memórias do tempo de guerra civil, ou as sequelas do pós-conflito, não fugindo
o devaneio literário ao papel de confrontar a humanidade com as suas
contradições.”
Um
aspecto peculiar de O Homem que Plantava Aves é a reunião, num mesmo texto, das
técnicas do jornalismo, da literatura e da resenha histórico-social. Mas, quem
é o homem que plantava aves? Lumbombo (raiz), paralítico à nascença, tal como
Kahito, do griô Wanhanga Xitu, é um prodígio na sua aldeia.
Esta
raiz paralítica produziu mais riqueza na aldeia que boa gente de corpo
saudável. Primeiro, foi a horta. Que atraiu tantas aves, ao ponto de os
vizinhos conjecturarem que Lumbombo passara, de simples domador, a plantador de
aves. Preocupado em “atrair simpatia feminina aprendeu a esculpir pentes.” Até
que, “com as suas poupanças, passou o mestre Lumbombo a investir na criação de
gado. De frágil a prodigioso, cativava beldades e acumulava bens sem sair do
lugar, sem conhecer o caminho da lavra sequer, já que só se podia mover
arrastando-se.” Esta estória deslumbra por essa razão. Uma lição de filosofia se
extrai no final: “Não é com as pernas que corremos, é com o pensamento.”
Gociante Patissa, qual plantador de aves literárias, reúne na sua
lavra vozes longínquas de mais-velhos e as vozes do seu quotidiano benguelense,
numa bela sinfonia de escrita.
É com o pensamento
que Gociante Patissa, o plantador de aves literárias, corre, de estória em
estória, reunindo na sua lavra vozes longínquas de mais-velhos e as vozes do
seu quotidiano, numa bela sinfonia de escrita, onde, por vezes, encontramos trechos
a raiar a textura da crónica, ou pedaços de ficção escritos como quem dança um
som de ngoma mítico, tal é a ordem de sub-esferas culturais e psico-sociais que
se entrechocam nas estórias.
Em Nossa Luta
Vossa Luta, abre-se o pano do palco histórico angolano, tal como Manuel Rui o
abre em Quem me Dera ser Onda. Com uma pitada de sarcasmo ajindungado. Assim lemos:
“Mas há por aí pólvora na via pública a apanhar restos nos contentores, na
birra do trânsito, na estatística da investigação criminal.” O mesmo jindungo
pica num outro conto, A Chefe e os Homens, que faz a apologia da mulher na
política.
A
Comissária Comunal da Equimina, ao tempo do partido único, é alvo do machismo
impenitente que grassa em Angola, principal. A Comissária havia espancado o
responsável de uma loja que tinha batido numa viúva e estava a ser alvo de
inquérito. “Dez dias depois saía o tão temido veredicto Primeiro. Recrutamento da
senhora agredida para os quadros da OMA e Promoção da Mulher. Segundo. Exoneração
do chefe da loja e responsabilização criminal do mesmo. (...) Contudo, este
resultado levou os detractores, que já davam como certa a exoneração da chefe,
a acreditarem ainda mais que a política é suja.”
Depois desta
colherada de caldo de peixe seco, cabe a vez ao leitor de comprar O Homem que
Plantava Aves e saborear o caldeirão real e, ao mesmo tempo, fantasioso, que
nos mostra outra parte de Angola, das vidas que por lá nascem, crescem e desaparecem
e da sua história que, por obra de Patissa, deixam um rasto indelével no livro.
Daniel Gociante
Patissa nasceu
em 1978 no Bocoio, Benguela. Tem licenciatura em Linguística, especialidade de
Inglês, pela Universidade Katyavala Bwila. Membro da União dos Escritores
Angolanos, foi distinguido com o Prémio Provincial de Benguela de Cultura e
Artes 2012, na categoria de Investigação em Ciências Sociais e Humanas, «pelo
seu contributo na divulgação da língua local Umbundu, na perspectiva das tradições
orais, através do conto e novas Tecnologias de Informação e Comunicação». Anima
os blogues www.angodebates.blogspot.com e www.ombembwa.blogspot.com
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