quarta-feira, 13 de março de 2019

Livro do mês na Revista África21 | O Homem Que Plantava Aves, De Gociante Patissa: Desfile Alegórico Da Praxis Popular Benguelense | Por José Luís Mendonça


LIVRO DO MÊS | Sugerimos ao leitor que pegue na obra O Homem que Plantava Aves, de Gociante Patissa, e comece por ler o último dos contos, Porque é que a Cauda de Lagartixa Cai? Este destoa do conjunto de estórias. É a voz de um contador de estórias anónimo, que Gociante talha com o formão da língua portuguesa num produto literário novo.

Por José Luís Mendonça, in revista África21, Nº 137, pág. 73/74, Luanda, Angola - Março 2019 

A seguir, leia-se A Lenda do Soberano Ndumba. Muito próxima da última estória, pela colagem ao nativismo, difere dela pelo recurso descritivo que caldeia todo o livro. É o que lemos neste trecho: “Concebo sipaio como milícia, um espécime rudimentar criado pela autoridade colonial, mas cujo poder se cingia sobre as comunidades indígenas, irónico instrumento de repressão de colonizados contra os seus semelhantes.”

O leitor atento pode constatar que certos recantos linguísticos trazem reminiscências do refinamento discursivo de Óscar Ribas. Nessa conformidade, o valor literário desta colectânea de contos não reside tanto no seu espectro linguístico, senão no registo fonético e no desfile alegórico da praxis popular benguelense de que se constrói a narrativa.

O Homem que Plantava Aves, lançado pela editora Acácias nos dias 14 e 15 de Dezembro nas cidades de Benguela e do Lobito, reúne 15 contos, de cuja leitura se extrai um valioso repositório de usos e costumes da região de Benguela. Neste sentido, esta obra é rica pelo seu pendor etnográfico. Como explica o autor, na nota introdutória, “Temos em mãos uma colectânea de ficção com esparsas referências autobiográficas do autor e do espaço de língua e cultura Umbundu, o que implica atravessar uma vez ou outros temas complexos, como as memórias do tempo de guerra civil, ou as sequelas do pós-conflito, não fugindo o devaneio literário ao papel de confrontar a humanidade com as suas contradições.”

Um aspecto peculiar de O Homem que Plantava Aves é a reunião, num mesmo texto, das técnicas do jornalismo, da literatura e da resenha histórico-social. Mas, quem é o homem que plantava aves? Lumbombo (raiz), paralítico à nascença, tal como Kahito, do griô Wanhanga Xitu, é um prodígio na sua aldeia.

Esta raiz paralítica produziu mais riqueza na aldeia que boa gente de corpo saudável. Primeiro, foi a horta. Que atraiu tantas aves, ao ponto de os vizinhos conjecturarem que Lumbombo passara, de simples domador, a plantador de aves. Preocupado em “atrair simpatia feminina aprendeu a esculpir pentes.” Até que, “com as suas poupanças, passou o mestre Lumbombo a investir na criação de gado. De frágil a prodigioso, cativava beldades e acumulava bens sem sair do lugar, sem conhecer o caminho da lavra sequer, já que só se podia mover arrastando-se.” Esta estória deslumbra por essa razão. Uma lição de filosofia se extrai no final: “Não é com as pernas que corremos, é com o pensamento.”

Gociante Patissa, qual plantador de aves literárias, reúne na sua lavra vozes longínquas de mais-velhos e as vozes do seu quotidiano benguelense, numa bela sinfonia de escrita.

É com o pensamento que Gociante Patissa, o plantador de aves literárias, corre, de estória em estória, reunindo na sua lavra vozes longínquas de mais-velhos e as vozes do seu quotidiano, numa bela sinfonia de escrita, onde, por vezes, encontramos trechos a raiar a textura da crónica, ou pedaços de ficção escritos como quem dança um som de ngoma mítico, tal é a ordem de sub-esferas culturais e psico-sociais que se entrechocam nas estórias.

Em Nossa Luta Vossa Luta, abre-se o pano do palco histórico angolano, tal como Manuel Rui o abre em Quem me Dera ser Onda. Com uma pitada de sarcasmo ajindungado. Assim lemos: “Mas há por aí pólvora na via pública a apanhar restos nos contentores, na birra do trânsito, na estatística da investigação criminal.” O mesmo jindungo pica num outro conto, A Chefe e os Homens, que faz a apologia da mulher na política.

A Comissária Comunal da Equimina, ao tempo do partido único, é alvo do machismo impenitente que grassa em Angola, principal. A Comissária havia espancado o responsável de uma loja que tinha batido numa viúva e estava a ser alvo de inquérito. “Dez dias depois saía o tão temido veredicto Primeiro. Recrutamento da senhora agredida para os quadros da OMA e Promoção da Mulher. Segundo. Exoneração do chefe da loja e responsabilização criminal do mesmo. (...) Contudo, este resultado levou os detractores, que já davam como certa a exoneração da chefe, a acreditarem ainda mais que a política é suja.”

Depois desta colherada de caldo de peixe seco, cabe a vez ao leitor de comprar O Homem que Plantava Aves e saborear o caldeirão real e, ao mesmo tempo, fantasioso, que nos mostra outra parte de Angola, das vidas que por lá nascem, crescem e desaparecem e da sua história que, por obra de Patissa, deixam um rasto indelével no livro.

Daniel Gociante Patissa nasceu em 1978 no Bocoio, Benguela. Tem licenciatura em Linguística, especialidade de Inglês, pela Universidade Katyavala Bwila. Membro da União dos Escritores Angolanos, foi distinguido com o Prémio Provincial de Benguela de Cultura e Artes 2012, na categoria de Investigação em Ciências Sociais e Humanas, «pelo seu contributo na divulgação da língua local Umbundu, na perspectiva das tradições orais, através do conto e novas Tecnologias de Informação e Comunicação». Anima os blogues www.angodebates.blogspot.com e www.ombembwa.blogspot.com
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