Hoje por hoje, quando um bom leitor se depara com
livro de autor desconhecido, é regra que reaja de forma cética e desdenhosa.
Olha para a capa, para a contracapa, para as badanas; mesmo que esta esteja
escrita da forma mais inteligente possível, ainda reage à biografia do autor
com o estoicismo de um médico calejado ante a impaciência de seu jovem
paciente. Tratando-se de obras prefaciadas, também reagirá a esses dados com
indiferença. Já tem noção de como fazem os prefaciadores: muitas vezes são
leitores superficiais e entusiasmados que não têm a sorte de captar o âmago da
matéria que introduzem.
Então o leitor avança e, se for realmente uma obra
de fôlego, ele começará a resfolegar logo nas primeiras palavras que lhe darão
entrada ao enredo. Porque para reconhecer um bom artista basta uma simples
palavra sua, um som, um piscar de olhos. Depois segue-se, da parte do cético
leitor, aquela estranha sensação de autoengano e também alguma autopunição
libertadora; logo após o prazer cresce em cada avanço, em cada página, em cada
secção. Muda-se o quadro, agora é ele que se sente caçoado, rebaixado,
desdenhado, com o orgulho tolhido. Engole em seco, de arrependimento, mas
também e sobretudo pela sorte de estar a degustar uma boa obra literária.
Existe melhor terapia do que essa? Muitas vezes o escritor, primeiro subjugado,
agora pesca o leitor, acolhe-o no seu manto, deixa-o prostrado na seguinte
oração: «eu falo, é o falo!», escreve sorrindo, soltando um peido, «eu vomito
cidades, todas as vossas cidades de novos-ricos e novos-pobres», ousa o
escritor. E o leitor pensa: micção/Mixinge/isso é felação, há muito que eu
andava a desconfiar de que as nossas cidades, e essa vaga de novos-ricos e
novos-pobres que só começaram a aparecer primeiro em 1975 e depois em 2002,
eram xixi e “dejetos fecais”. Mas o leitor não tem como abrir a boca, fica
preso à trama… uma leitura assim é eletrizante. Atua como íman, prende e faz
refém. Ele fica imerso na leitura, é absorvido, absolvido e convidado a adotar
posições kamasutrianas. Só quando
alcança as três ou duas páginas derradeiras, aquelas que desfecham o enredo, é
que se lembra de parar, de forma brusca, porque é chato constatar que se vai
terminar a leitura de um bom livro; e por isso finge, procurando prolongar, por
subterfúgios, o momentum. Numa
atitude de desespero, põe o marcador na página derradeira e devaneia: sopesa o
livro, sente-lhe o cheiro, o tato também, detém-se por mais tempo e com algum
respeito na leitura da biografia e na imagem do autor para lhe perscrutar as feições
e abstrair as emanações da sua personalidade… Um bom leitor não aprecia um
livro antes de saber do que este retrata.
Sempre tive medo de terminar a leitura de um bom
livro; deixa-me uma sensação de desamparo, de traição e de vazio absoluto. Um
bom livro é como o coitado do coito, seu fim nunca foi bem-vindo.
* “O Ocaso dos pirilampos” é título de um livro da autoria de Adriano
Mixinge, escritor angolano; vencedor do prémio Sagrada Esperança. Esse texto
foi inspirado pela leitura daquele livro.
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