A bem-sucedida visita do Presidente
Marcelo Rebelo de Sousa, os afectos, as selfies com o Ti
Celito e a aparente bonomia do Presidente João Lourenço, são a superfície. Sob
este nível cutâneo, os portugueses continuam a ser, sobretudo, colonos.
É longa e boa a minha relação com Angola. É marcada pelos amigos, muito
bons amigos, de décadas; por um interesse profundo por um povo muito bom,
amaldiçoado com um governo muito mau que felizmente, com João Loureço, está a
melhorar todos os dias; e por dedicação profissional a África, em parte devido
ao meu trabalho numa emissora internacional nos Estados Unidos.
Esta relação de proximidade com Angola, e o facto de a maioria dos
angolanos que me conhecem me associarem aos Estados Unidos, permite-me ouvir deles
avaliações francas sobre Portugal. E Portugal – a Tuga – é a terra dos colonos.
Os “pulas” – os portugueses – são amigos de ocasião e convenientes bombos da
festa. Estão lá pelo dinheiro, não pela amizade. O mesmo se pode dizer da
interesseira amizade angolana com Portugal: apesar das “ameaças” de amizade com
Espanha ou França, não há porta europeia como a portuguesa. São assim as
relações internacionais. Todas as amizades o são por conveniência.
Repare-se no “irritante”. Independentemente do mérito do caso na justiça
portuguesa contra o ex-vice-Presidente, Manuel Vicente, Angola não aceitou –
nem nunca aceitaria – a sujeição de quem foi um alto responsável do estado à
ex-potência colonial. Não está em causa saber se Vicente era, ou não, corrupto.
Provavelmente, é. Aceitar que a justiça portuguesa, mesmo sem as suas tristes e
lamentáveis práticas recentes, pudesse sobrepor-se à atroz e incompetente
justiça angolana é inaceitável. Como qualquer angolano nos dirá, “a nossa
justiça é má, mas é nossa”.
É claro que, para os adversários do regime, recorrer à justiça da
ex-colónia é uma faca de dois gumes. Por um lado, mesmo má, é melhor e mais
independente do que a angolana. Logo, a probabilidade de se fazer justiça é
superior. Mas, por outro, a situação gera um enxovalho e uma humilhação a que
muitos angolanos não querem sujeitar o seu país. Apesar de, entre a oposição,
suscitar uma boa dose de shadenfreude ver
os arrogantes e corruptos dirigentes do MPLA a suar as estopinhas em Lisboa,
castigar os nossos às mãos dos estrangeiros, não é sucesso garantido.
No caso de José Eduardo dos Santos e do seu regime, era um mero caso de
arrogância, de “como se atrevem”, vindo de um regime com uma noção imperial da
presidência. No caso de João Lourenço foi uma necessidade política. Defender
Manuel Vicente não era defender Manuel Vicente. Era defender João Lourenço. O
novo presidente angolano estava a atiçar muitos marimbondos e
fazer frente a Portugal ajudou a proteger o seu flanco interno.
Por um lado, deu uma satisfação aos muitos que, nas elites angolanas, se
sentem desconsiderados pelos “pulas” e agastados com a arrogância com que
muitos – e não são poucos – comparecem em Luanda. Por outro, Lourenço precisava
de estabelecer contrastes firmes com José Eduardo dos Santos. E mesmo que a
justiça angolana não seja, ainda, muito melhor – os aperfeiçoamentos
necessários estão a anos de distância – o facto de não ser arma contra a
oposição constitui, em si mesmo, uma bem-vinda melhoria.
À atitude sobranceira com que Luanda lidou durante anos com Lisboa não é
alheia a postura desta, solícita, de chapéu na mão, ou abjecta, de joelhos,
como foi o caso de Rui Machete, incitando à humilhação. Até mesmo no caso
recente do Bairro Jamaica, aceitando que o Governo português não pediu desculpas
a Luanda, alguma coisa foi dita para permitir tal interpretação.
Recentemente, encontrei nos arquivos diplomáticos portugueses um telegrama
da embaixada em Luanda, de 1976, dando conta de uma carta do então Ministro das
Relações Exteriores, José Eduardo dos Santos, ameaçando expulsar os diplomatas
portugueses, se Lisboa continuasse a permitir a presença de apoiantes angolanos
da UNITA no português. Não faltam, no historial desta relação, manifestações de
nacionalismo defendendo a soberania angolana através de imposições à soberania
portuguesa.
As mudanças de José Eduardo dos Santos para João Lourenço retiraram à
presidência insolência e sobranceria, humanizaram-na e aproximaram-na dos
governados, mas não alteraram o carácter nacionalista do MPLA que se reflecte
nas suas relações com Lisboa.
Por muito que precise de Portugal e dos portugueses, e precisa, Luanda
olhará sempre para os pulas como
colonos, primeiro, e amigos depois.
0 Deixe o seu comentário:
Enviar um comentário