Foi nos
inícios dos anos 60 do século passado, certamente por pressão dos movimentos
independentistas e urgente necessidade de provar ao Mundo que éramos todos,
brancos, pretos, amarelos, mulatos e companhia, todos iguais perante a Nação,
que Portugal começou a integrar os naturais das ex-colónias nas tropas da Marinha.
E lembro-me de um navio de guerra português que fundeou no porto da vila de
Sal-Rei donde desembarcaram uma quantidade de jovens negros, bem tratados e
fardados de um branco impecável e imaculado, e que saíram a passear e conhecer as
ruas da vila. Quando passaram pela nossa casa a minha mãe viu-os e chamou-nos,
Venham ver uns pretinhos de guerra a passar! Fomos ver. Eram muitos e
rigorosamente fardados e bonitos, passeando em fila quase militar, sorrindo
para nós, cumprimentando alegres. Depois que ficámos só nós, disse para a minha
mãe, Mas espera, tu também és preta! Não, respondeu sem hesitar, nós somos
cabo-verdianos.
Os cabo-verdianos em geral sempre tiveram alguma dificuldade
em aceitar a sua condição de negro. Há muitos exemplos históricos a comprovar
essa asserção, alguns bem caricatos como o caso de um administrador da ilha do
Maio no século 18, negro como um carvãozinho, mas que se apresentou como branco
a estrangeiros que visitaram a ilha. Pode ter sido o conhecimento dessa
fraqueza nacional que levou Baltazar Lopes, no prefácio a Aventura Crioula de
Manuel Ferreira, a afastar a nossa eventual condição quer de africanos quer de
europeus, para sem mais nos afirmar orgulhosamente cabo-verdianos. E dentro
dessa linha de pensamento, costumo defender, sem qualquer fundamento
científico, é verdade, a existência de mais uma raça, a juntar-se às já
existentes, e que é a raça cabo-verdiana.
Penso que se alguém com capacidade e conhecimento e
vontade, pegasse a sério nesse postulado, bem perfeitamente que sem grande
esforço poderia reencher o novo conceito de mais uma raça no mundo, a
cabo-verdiana, caracterizando-a como tendo sido historicamente composta por
todas as raças e culturas que aqui aportaram e se juntaram e se misturaram e se
multiplicaram e acabaram criando raízes e se espalharam pelas ilhas todas,
todos moldados por uma terra onde tiveram que quebrar pedras para inventar
comida e que manenti manenti não se acanhava de os matar à fome.
Ora aconteceu que na sua intervenção parlamentar durante a
reunião da Assembleia Nacional a deputada por África, eleita nas listas do
PAICV, discutindo a mobilidade e integração na CEDEAO, insurgiu-se contra o
tratamento que considera discriminatório a que viu serem sujeitos os africanos
que pretendem vir para Cabo Verde, com exigências que considera vexatórias, e
concluiu que até se poderia classificar isso tudo como discriminação racial.
Foi um deus-nos-acuda! Imediatamente os deputados
apoiantes da situação e que estavam sentindo o Governo acossado, logo agarraram
o mote e não mais largaram o osso. Racismo não! É grave acusar as pessoas de
racismo, porque o cabo-verdiano, o povo cabo-verdiano, não é racista. Mas o
mais grave é o PAICV, os deputados do PAICV, ouvirem essa afirmação atentatória
da dignidade nacional sem reagir, aceitando de facto uma situação que deixa de
rastros o povo cabo-verdiano…
De modo que a dúvida está lançada, e como não há não que
não contenha um sim, vamos aguardar pelos próximos capítulos a ver se sim ou
não somos racistas ou simplesmente cabo-verdianos.
In revista África21, Nº 137, pág. 58, Luanda, Angola -
Março 2019
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