Em
1980, a União dos Escritores Angolanos publicou a segunda edição da «noveleta»,
como lhe chamou Mário António, intitulada Nga Muturi cujo autor é Alfredo Troni
(1845-1904), um jurista português que na segunda metade do século XIX se
estabeleceu em Luanda, tendo desenvolvido outras atividades como advogado, juiz
e diretor de jornais, entre os quais se destaca o Jornal de Loanda. Após a sua
publicação em folhetins no jornal português Diário da Manhã em 1882, a primeira
edição de Nga Muturi saiu em 1973 com a chancela portuguesa das Edições 70.
O
ensaísta e poeta angolano Mário António que escreve o prefácio aproveitava
então a oportunidade para lançar mais uma pedra no edifício da sua apologia da
crioulidade fazendo eco do famigerado lusotropicalismo de Gilberto Freire,
doutrina tão cara à ideologia fascista do Estado Novo em Portugal.
Ocorreu
muito recentemente (2014) uma terceira edição com a chancela de um projeto de
divulgação de «onze clássicos da Literatura Angolana». Ora, se um clássico é
uma obra que deve ser recomendável para o ensino das novas gerações, reitera-se
aqui o problema da seleção de textos que suportarão o processo de ensino-aprendizagem
e consequentemente a formação do cânone literário angolano. Uma década após a
polémica travada nas páginas do Jornal de Angola que mobilizou a atenção do
público sobre a inclusão/exclusão de determinados escritores numa coleção
denominada «biblioteca da literatura angolana», subsistem dúvidas acerca da
representatividade de autores e textos no quadro do sistema literário nacional.
Trata-se
de uma problemática que merece uma séria reflexão, na medida em que este
assunto já suscitou abordagens que poderiam ter conduzido a consensos. Estamos
todos lembrados que o debate sobre o cânone literário em Angola ganhou
visibilidade pública a partir de 1997, por ocasião do Encontro Internacional
sobre Literatura Angolana, realizado em Luanda. Portanto, nesta matéria não se
justifica a recorrente da imprudência quando se revela necessário proceder à
revisão de leituras e avaliações críticas do passado. O trabalho de seleção do
cânone literário angolano exige a leitura rigorosa de todas as obras escritas
por autores angolanos com recurso a subsídios de uma profunda abordagem
filosófica, teórica e crítica.
Para
o que interessa ao tema em discussão, o domínio em que tal exercício pode ser
suficientemente ilustrativo é o da teoria da literatura e da crítica literária,
no que concerne a avaliação estética com particulares incidências sobre o
universo dos discursos e das categorias narrativas dos textos. Além disso, há
ainda outros planos de abordagem disciplinar que completam tal tarefa. Por essa
razão, torna-se indispensável um conhecimento sólido da história social e
intelectual de Angola, tendo em conta as diversas temporalidades e suas
projeções.
Numa
perspetiva analítica é fácil concluir que em Nga Muturi o retrato da sociedade
colonial constitui o modelo fundador do que viria a ser a literatura colonial.
Se o conceito de situação colonial revela a existência de uma sociedade assente
na divisão maniqueísta e «racial» entre filhos da terra, indígenas e
assimilados, por um lado, e europeus, comerciantes, portugueses, por outro
lado, é presumível que a sociedade que se funda após a independência pretenda
superar tal divisão. Sendo assim com o devido critério da seletividade, não me
coíbo de excluir do cânone literário angolano as obras que reflitam a ausência
de protagonistas angolanos e a negação da sua autonomia no plano ontológico. É
o caso da obra em questão.
Portanto,
a construção do cânone literário angolano é rigorosamente um problema de
organização curricular, pois articula-se à problemática do reconhecimento das
obras dos antigos excluídos do sistema colonial, mas hoje portadores e sujeitos
de culturas com dignidade de qualquer outra cultura do mundo, sendo suscetível
de transmissão aos angolanos das novas gerações.Com semelhante abordagem
estabelecem-se conexões com o campo cultural, na medida em que está em jogo a
imposição da visão legítima a respeito dos princípios da classificação das
obras literárias.
Contudo,
para lá do processo de descolonização cultural iniciado com os primeiro
movimentos nativistas do século XX, ainda estão latentes em Angola as marcas do
legado colonial. Daí que irrompam por vezes critérios de divisão tributários do
colonialismo. Do ponto de vista estético, o retrato de uma personagem feminina
como Nga Ndreza desvenda o olhar exótico que o autor lança sobre a paisagem
humana local, integrada por mulheres que são objetos da concupiscência dos
colonos. Bebeca, Nga Ndreza, Chica, Muximinha, Fefa são personagens que povoam
o mundo de homens que apenas lhes cobiçam os corpos com desprezo total pela sua
condição humana.
Aquele
episódio dos açoites sofridos pela mucama Nga Ndreza por ter sido apanhada com
o «Ebo, um bonito moço da Ginga, forte e esbelto, com uns olhos que eram os
seus pecados», é revelador da instrumentalização das mulheres que se devem
submeter à vontade dominadora dos argentários do momento, caçadores de fortunas
nos trópicos. Por isso, consideravam uma «desgraça» que os «filhos da terra», após
a sua morte, amigassem com as suas concubinas, receando que o seu legado fosse
parar às mãos dos patrícios delas. Esse é o risco que corria Nga Ndreza, agora
Nga Muturi. O paternalismo dos colonos não constitui apenas pura generosidade.
Trata-se de um tipo de comportamento que recompensa a fidelidade das concubinas
nativas que, recorrendo às promessas da Nossa Senhora da Muxima e aos
expedientes dos filtros amorosos, deviam prender os patrões garantindo-lhes uma
descendência.
Esse
é o mundo do amor instrumental. Tal imagem contrasta com as propostas no
discurso lírico de Joaquim Dias Cordeiro da Matta. É ele que com Delírios
(1886) inaugura a construção de uma estética literária angolana, concorrendo
para a definição de novos padrões da beleza e da condição feminina. Neste
sentido Nga Muturi não representa qualquer modelo a seguir.
In
«Mutamba», suplemento cultural do Novo Jornal, N.º 387, Luanda,03/07/2015
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