quinta-feira, 23 de julho de 2015

Da série visitando o baú | DESAFIOS DE UM TRADUTOR/INTÉRPRETE

Como já disse bwé de vezes, a minha trajectória e tudo o que um dia for ou fizer, a par do inconformismo estrutural e do poder criativo, tem duas bases determinantes: uma é a educação e legado cultural da minha MÃE, outra é a língua inglesa.

A minha relação com o Inglês data de 1993, aos 15 anos. Seguiram-se anos de muita leitura e exercícios, inicialmente com ajuda do Paulino Sõi (parente por afinidade), do bairro da Pomba no Lobito, cerca de 10 Km do bairro Santa Cruz, onde morava eu, ligação que fazia a pé, muitas vezes a fome. O país enfrentava a penúria alimentar, com o reacender da guerra civil pelo fracasso eleitoral de 1992. Paulino tinha livros, paciência e deixava-me passar horas e horas no seu quarto a transcrever vocábulos. Ao mesmo tempo, para resgatar o televisor das mãos do mestre, vendia estátuas de madeira lá de casa a capacetes azúis britânicos da ONU e assim praticava com falantes nativos.

Uma curiosidade: o primeiro projecto da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade), ONG ainda consolidação, teve o financiamento da Oxfam (aprovado durante o consulado da holandesa Erika, verba desbloqueada já com Tuca Manuel a representar aquela agência britânica). Mas foi num domingo de praia em 2003, na ponta da Restinga, que acidentalmente se teve um diálogo descontraído com a Erika, até então desconhecida. A jovem disse que era representante da Oxfam, que tinha financiamento para projectos de luta contra ITS e VIH/SIDA e que devíamos concorrer. Os activistas voluntários teriam conhecido por conta do projecto «Viver Contra a SIDA» a oportunidade de servir na comunidade de Santa Cruz, Lobito, e Curral e Alto Chimbwila, na Catumbela.

Voltando ao Inglês e às traduções, assinalo aqui três momentos marcantes: um foi por contrato da Handicap em 2006 para intérprete de um jornalista irlandês que veio dar workshop sobre audiência e técnicas de mobilização mediática (com drama e vinheta) a associações que trabalham na causa de pessoas com deficiências. Aprendi bastante; o outro foi ao realizar a fantasia de traduzir do Inglês para Umbundu, dispensando o Português, quando uma delegação humanitária se reuniu com sobas e autoridades tradicionais no Cubal. A mais complexa empreitada, no entanto, foi em 2006 a contrato do Programa Nacional de Reabilitação, a que a foto faz referência.

Os termos do contrato indicavam quatro dias de tradução/interpretação para o Dr. Ron, americano, especialista em «hearing impairment» (deficiência auditiva). Incluíam consultas na Escola do Ensino Especial, visita a escolas com turmas de integração no Lobito, e aplicação de prótese auditiva. Cinquenta dólares/dia era o meu preço de base.

Ainda ao primeiro dia, tive de reclamar: passavam das 14h00 e nada de pausa para o almoço. O dia de trabalho começava às 08h30. A adaptação ao ambiente da escola em si era o maior desafio. Muito barulho, dispersão de atenção, para quem vem de fora. Havia equipamentos técnicos que eu via pela primeira vez. O amigo Jesmim, técnico sénior da instituição, complementava a comunicação com utentes mudos, pois o código gestual angolano difere do americano. O semblante estafado, ainda a meio do contrato, era inevitável. E o americano tocava-me no ombro e repetia num tom motivador, que soava irónico: «I feel that you like it. You’re good!» (sinto que gostas disso. És bom!). E aqui termina o quarto texto da série de minhas memórias sócio-profissionais.

Gociante Patissa, Benguela 23 Julho 2015
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