Em outubro de
2005, visitei zonas recônditas no Sambo, comuna do município da Cikala
Colohanga, no Huambo. Fiz parte do grupo de pesquisadores a grupos focais ao
serviço da inglesa «Save the Children». Os alvos eram crianças órfãs e
vulneráveis na Ombala de Ciyaya, capital tradicional de cinco aldeolas de
refugiados provenientes da Zâmbia, cerca de oito quilómetros da comuna de
Samboto. A povoação ressentia-se do fim da assistência do Programa Alimentar
Mundial, agência humanitária da ONU.
Mesmo que o código
de conduta da «Save» não proibisse gratificações de ordem material daqueles
aldeões que ensaiavam a readaptação, finda a guerra que um dia os afugentou, o
quadro crítico de penúria dizia bem que nada tinham para oferecer. Para se ter
ideia, ainda aos nove anos, várias crianças andavam na produção de carvão
vegetal para sustentar pais e avós, muitos dos quais dependentes de aguardente
artesanal.
A recolha de
dados ficou concluída com êxito em uma semana, conforme o plano. O que,
entretanto, não esteve previsto foi a tensa conversa com o Soba grande da
Ombala na hora da despedida. Fazia questão de nos regalar com duas galinhas,
dois quilos de feijão e alguma batata-doce. E agora, o que havíamos de fazer?
Receber, ou não?
Uma comissão
reuniu-se no cantinho, tendo como interlocutora a mais-velha do grupo.
Primeiro, era-nos enorme a empatia pelo sofrimento, não fazendo grande sentido
despenderem do já tão pouco. Segundo, o código de conduta proibia-nos, pois não
estávamos ali em visita, mas a trabalhar sob pagamento. O Soba, que sabia ao
mesmo tempo ser cordato mas intransigente, considerou de improcedente a nossa
visão. Não é «nosso», sublinhava, terminar uma visita sem «okupokiwa»,
símbolo de hospitalidade!
Como o leitor terá
já percebido, cá estamos com mais um estudo, outra vivência para abordarmos
aspectos da tradição oral do grupo etnolinguístico Ovimbundu. O verbo «okupoka»
(regalar) ou «okupokiwa» (ser regalado) refere-se a bens alimentares
para a boa hospitalidade, genericamente servidos como refeição, donde se
destacam a «ocisangwa» (bebida feita à base de farinha ou rolão de
milho, conhecida pelo seu aportuguesado quissângua) e a galinha. A norma do bom
acolhimento assenta no adágio de que «ukombe elende; ndopo yaco lipita» (o visitante
é nuvem; passa logo).
Quanto às regras
de confecção, é certo que cada grupo entre os Bantu do território de Angola tem
particularidades próprias. No essencial, a galinha é guisada e servida com
todas as partes que a integram, reservando-se ao visitante
a primazia de abrir a mesa e escolher
das porções que bem entender. Não devem faltar o coração, as tripas, as coxas,
as patas, as asas, a moela e por fim o rabinho. Dado o risco de o visitante levar à risca o direito que lhe cabe,
e daí apossar-se da tigela inteira, outras iguarias não tão especiais
complementam a ementa para os anfitriões, tais como o feijão e as verduras. Daí
que esta praxe exija dos anfitriões uma preparação das crianças, por não ser
propriamente frequente para consumo o abate de animais de criação.
Julgo não estar
muito longe da verdade se afirmar que os Ovimbundu levam muito mesmo a mal
qualquer gesto passível de ser interpretado como desprezo ou colocar alguém na
condição de mendigo. É óbvio que nem tudo é linear. A vida na cidade é cara,
aliás bem eloquente é o aforismo: «ohombo yilya opapelo, omunu olya olombongo» (cabrito come papel, pessoa come
dinheiro). Tal não é, porém, a herança ancestral de povo camponês, criador de
gado e caçador, como dá a entender a máxima «casupa oco catenlã» (se sobrar, é
porque satisfez), ou ainda «nda cipwa, cipwe;
ocipa ha nanga ko» (se gastar, que gaste; pele de animal
não é tecido de algodão).
Tão sagrada é a
boa hospitalidade que, ainda hoje, é quase uma questão de arte o papel de bom
visitante lá onde os anfitriões estejam conglomerados por laços familiares ou
de forte afinidade. Como se desenvencilharia o caro leitor se cinco lares, na
razão de uma galinha por cada, lhe fizessem chegar à mesa o prato? Ora, o
segredo está em comer um bocado de cada lar. De outro modo, fica a mágoa de
quem vir a comida rejeitada.
Regressemos,
pois, ao dilema do Soba grande de uma aldeia de refugiados em extrema carência
mas que exigia que aceitássemos a oferta de bom hospitaleiro. Ora, entre a
ética positiva de base ocidental e a costumeira africana, onde os anciãos são
por vocação uma entidade, tivemos de arranjar um meio-termo. Não era prudente
afrontar uma autoridade tradicional, quando se iria caminhar cerca de dez
quilómetros em mata cerrada. Foi então que juntamos o que sobrou da nossa
logística, se bem me lembro uma lata de leite, grade de gasosa, uns cinco
quilos arroz, massa, óleo alimentar, sal, sabão, peixe seco, entre outros, que
não ficaria por menos dez mil kwanzas.
Para terminar a
reflexão de hoje, diríamos que «okupoka» é um gesto simbólico de boa
hospitalidade, geralmente ligado a géneros alimentares, que tanto podem ser
consumidos durante a estadia, ou levados como lembrança.
Gociante Patissa,
Luanda, 12 Julho 2014
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