sábado, 24 de novembro de 2012

Crónica: Elevadores americanos, um monumento ao desconhecido


Janeiro de 2010. A chegada a Washinton, DC começou com pequenos percalços no aeroporto de Dulles. Na verdade, os percalços tinham começado bem antes, no voo de ligação em Newark, onde o pessoal de segurança suspeitou pelo tamanho da pasta de dentes que trazia de Lisboa estar acima do permitido para bagagem de mão. A presença do protocolo do Departamento de Estado (um senhor simpático de casaco azul) ajudou a desdramatizar a coisa, pois um mês antes tinha sido abortada tentativa terrorista de Mutallab, um jovem nigeriano, de pele escura e desacompanhado, como eu.

Voltando a Dulles, é um enorme aeroporto com dois pisos para saída, um reservado a viaturas familiares e outro para serviços de táxi. Fui logo sair trocando as opções. Perguntando a esse e àquele, lá consegui enfiar-me num táxi. Era africano o motorista, somali de 25 anos, que dizia estar nos EUA pela via do “green card” já lá iam dois anos. Pensava buscar a família, à medida que se estabilizasse. Pediu-me 30 dólares, e eu dei 50, satisfeito pela africanidade com que me abordou durante meia hora de estrada.

Na recepção, aguardava por mim um envelope com o mapa da cidade (como se o meu sentido de orientação fosse grande coisa) e a chave da porta em forma de cartão multi-caixa. Estavam também os três tradutores (mais guias do que tradutores, uma vez que dominar a língua inglesa era pressuposto para aquele programa de intercâmbio). Fiquei triste ao saber que me tinham reservado o quarto número 800. Não tenho a mínima atracção por elevadores, e caminhar oito andares é uma maçada. Tinha decidido aguentar tais "peregrinações", mas logo desisti de tamanha casmurrice. E foi nos elevadores que observei multiplicidade de choques culturais e laboratórios sociológicos.

Ia saudando em cada entrada para o elevador, como faria aqui, mas à medida que fossem entrando outras almas, notei que não esboçavam o mínimo gesto de saudação (salvo raras excepções). Acomodavam-se e olhavam para o lado. Estranho, pensei. Que vem a seguir? Essa gente faz monumento ao desconhecido? Como posso encontrar alguém num lugar tão restrito, como um elevador, e simplesmente “fingir” que não estou ali? Sim, porque saúdo para dizer que existo, como pessoa, como ser social. O outro lado faz o mesmo, e celebramos o milagre da vida, por muito breve que seja um sorriso, um aceno, ou um simples olá.

"I don't think I should say hello to the people that I don't know” (não acho que seja obrigação saudar pessoas que não conheço), disse certa vez, no contexto angolano, alguém de nacionalidade (e cultura) americana. Não lhe prestei grande atenção cá, como é óbvio. Agora que estava lá, as mesmas palavras tinham sentido bem diferente.

Mas depois me repreendi a mim mesmo por essa análise tácita em função da construção social, do meu sistema de valores, sobre a leitura de uma realidade geográfica e culturalmente distante. Que será que representa para a sociedade americana "o desconhecido"? Um ser inerte, uma fonte de medo, uma indiferença em movimento?

Gociante Patissa, Benguela 24 Novembro 2012
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2 Deixe o seu comentário:

JORNAL RAIZONLINE - SEPARATA disse...

Gostei bastante deste texto, sobretudo do estilo, com aquele humor que você diz fazer falta. Parabéns

Daniel Teixeira

Ps: Vou publicar no Raizonline, desta vez com o seu nome correctamente escrito.

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Muito obrigado, caro Daniel Teixeira, tem sido um prazer a divulgação que prestam ao meu trabalho. Um abraço da praia do Lobito hoje.

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