quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

(arquivo) Crónica | LÍNGUA MATERNA OU OFICIAL? (*)


Sei que há quem esteja à espera da hora 19, para se sentar diante do canal 2 da TPA, porque “…é dia de mudar de vida!”, como nos tortura em jeito de publicidade a turma do “Angola dá sorte”. Uns realmente ganham, eu porém faço parte dos que só perdem. Aliás, o primeiro sinal, hoje, foi ter perdido o sono antes das duas da manhã.

Deixo a cama, pego nos meus livros, ligo o diskman e uns kizombas dão-me banho. Tento ler, mas me vem à cabeça a pressão social (aquilo que queremos não nos quer; aquilo que não desejamos persegue-nos). Insisto, mas não consigo mesmo concentrar-me à leitura. Então recorro ao meu habitual consolo (um bloco e uma bic azul) e ponho-me a escrever. De princípio a letra é feia, mas vai ficar bonita logo no computador.


Disse um angolano na Tuga, certo dia, que a vida se resumia a duas grandes desvantagens: uma era ser jovem e a outra ser mulher. Fiquemos hoje com a primeira. Ora não se tem a idade nem a qualificação ideal para certas oportunidades, ora já se passou dos 30 anos e não dá, mesmo depois de estabelecido o parâmetro 15-35 anos como padrão de juventude. Reclamamos, insultamos as instituições, praguejamos e tudo o mais. Mas também nos lembramos de certas conquistas colectivas e vemos que vale a pena lutar, basta estarmos atentos ao que vai pela imprensa e lubrificar sempre os mecanismos da amizade. Afinal, o autor de “renúncia impossível”, que a dado passo reconhecia “atingi o zero”, foi presidente desse país.



Encontrava-me ainda em Luanda, em seminário, quando um telefonema amigo me incentivou a concorrer a uma vaga de uma companhia petrolífera. Confesso, não acredito em nenhum concurso no meu próprio país, muito mais quando dirigido por irmãos angolanos. Mas tento, às vezes, não ser carrasco de mim mesmo e retribuo a consideração dos amigos que gastam do seu saldo e da sua saliva em conselhos.



Assim, anteontem, juntei o monte de documentos e fui ao centro de emprego, do Ministério do Trabalho, na minha cidade (é curioso como a nossa vida é em tamanho A4: certidões de nascimento, contratos, títulos de salário, cartas de despedimentos, certidões de casamento, facturas de luz, telefone, etc., tudo em A4).



Uma vez lá, encontro um senhor cuja testa parecia estar há anos sem saber o que é sorrir. Pronto, saúdo e avanço, a final não estava ali para semear amizades. Na secção a seguir, uma senhora dá-me o formulário e algumas instruções. Escrevo tão rápido que, volta e meia, tinha tudo preenchido… e a discussão inicia com a atendedora: tudo porque preenchi o Umbundu como sendo a minha língua materna. “A nossa língua materna é aquela que falamos”, dizia ela. Pois claro, mas é essa mesma a minha língua de berço; tanto o português como o inglês, eu aprendi-os foi na escola. Que azar me arranjei!


A senhora submeteu-me então a uma cátedra: “língua materna é aquela que herdamos do colonizador, porque é a língua que nos une; olha, um zairense, por exemplo, na escola fala lingala? Claro que não, moço!” Impotente e em desvantagem, disse-lhe apenas que era complicado. “Pois, mas estou-te a fazer entender agora que, no espaço língua materna, escreva português, porque o Umbundu é dialecto apenas!”, ditava ela. Os meus suspiros e reticências não a impediram de pegar no corrector e, a mando dela, eu declarar o português como “minha língua materna”, relegando o meu doce Umbundu ao segundo plano.


Deixei o Centro de Emprego bastante contrariado, quase irritado. Já não basta o que basta, agora também me roubam a minha história, a minha dignidade? Será que por necessitar de uma carreira, perco o direito de ter nascido no kimbo, ter o Umbundu como primeira língua da minha vida, ligada às primeiras memorias que guardo com honra?!


Agora são três e um quarto, e tento voltar à cama, mendigar algumas horas de sono. Se penso em pessoas como tu, por isso não tenho sono, ou se não tenho sono e por isso penso em pessoas como você, isso importa. A verdade é que às vezes apetece desistir de tudo e morrer por algumas semanas. Mas depois a nossa consciência diz-nos não ser justo, já que ainda resta algo de que nos orgulharmos: os amigos que temos, o espírito lutador e as conquistas acumuladas diante de tanta impossibilidade. Força, há que erguer a cabeça, ainda que nos pisem sobre ela!.


Por: Gociante Patissa, Lobito, 23 de Setembro de 2005

(*) Publicado em Setembro de 2005 através dos Blogs "Desabafos Angolanos" e "Ondaka Usongo"
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1 Deixe o seu comentário:

Unknown disse...

Parece que o processo de colonização ainda continua. Este é um aspecto grave. Ninguém está interessado nas línguas nacionais-maternas. Por isso as não ensinam e nem estão interessados em ensiná-las nas escolas. Aliás, os próprios dirigentes do país falam nenhuma delas. Deve ser por isso que não têm interesse algum.

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