Sei que há quem esteja à espera da hora 19, para se sentar diante do canal
2 da TPA, porque “…é dia de mudar de vida!”, como nos tortura em jeito de
publicidade a turma do “Angola dá sorte”. Uns realmente ganham, eu porém faço
parte dos que só perdem. Aliás, o primeiro sinal, hoje, foi ter perdido o sono
antes das duas da manhã.
Deixo a cama, pego nos meus livros, ligo o diskman e uns kizombas dão-me banho.
Tento ler, mas me vem à cabeça a pressão social (aquilo que queremos não nos
quer; aquilo que não desejamos persegue-nos). Insisto, mas não consigo mesmo
concentrar-me à leitura. Então recorro ao meu habitual consolo (um bloco e uma
bic azul) e ponho-me a escrever. De princípio a letra é feia, mas vai ficar
bonita logo no computador.
Disse um angolano na Tuga, certo dia, que a vida se resumia a duas grandes
desvantagens: uma era ser jovem e a outra ser mulher. Fiquemos hoje com a
primeira. Ora não se tem a idade nem a qualificação ideal para certas
oportunidades, ora já se passou dos 30 anos e não dá, mesmo depois de
estabelecido o parâmetro 15-35 anos como padrão de juventude. Reclamamos,
insultamos as instituições, praguejamos e tudo o mais. Mas também nos lembramos
de certas conquistas colectivas e vemos que vale a pena lutar, basta estarmos
atentos ao que vai pela imprensa e lubrificar sempre os mecanismos da amizade.
Afinal, o autor de “renúncia impossível”, que a dado passo reconhecia “atingi o
zero”, foi presidente desse país.
Encontrava-me ainda em Luanda, em seminário, quando um telefonema amigo me
incentivou a concorrer a uma vaga de uma companhia petrolífera. Confesso, não
acredito em nenhum concurso no meu próprio país, muito mais quando dirigido por
irmãos angolanos. Mas tento, às vezes, não ser carrasco de mim mesmo e retribuo
a consideração dos amigos que gastam do seu saldo e da sua saliva em conselhos.
Assim, anteontem, juntei o monte de documentos e fui ao centro de emprego, do
Ministério do Trabalho, na minha cidade (é curioso como a nossa vida é em
tamanho A4: certidões de nascimento, contratos, títulos de salário, cartas de
despedimentos, certidões de casamento, facturas de luz, telefone, etc., tudo em
A4).
Uma vez lá, encontro um senhor cuja testa parecia estar há anos sem saber o que
é sorrir. Pronto, saúdo e avanço, a final não estava ali para semear amizades.
Na secção a seguir, uma senhora dá-me o formulário e algumas instruções.
Escrevo tão rápido que, volta e meia, tinha tudo preenchido… e a discussão
inicia com a atendedora: tudo porque preenchi o Umbundu como sendo a minha língua
materna. “A nossa língua materna é aquela que falamos”, dizia ela. Pois claro,
mas é essa mesma a minha língua de berço; tanto o português como o inglês, eu
aprendi-os foi na escola. Que azar me arranjei!
A senhora submeteu-me então a uma cátedra: “língua materna é aquela que
herdamos do colonizador, porque é a língua que nos une; olha, um zairense, por
exemplo, na escola fala lingala? Claro que não, moço!” Impotente e em
desvantagem, disse-lhe apenas que era complicado. “Pois, mas estou-te a fazer entender
agora que, no espaço língua materna, escreva português, porque o Umbundu é
dialecto apenas!”, ditava ela. Os meus suspiros e reticências não a impediram
de pegar no corrector e, a mando dela, eu declarar o português como “minha
língua materna”, relegando o meu doce Umbundu ao segundo plano.
Deixei o Centro de Emprego bastante contrariado, quase irritado. Já não basta o
que basta, agora também me roubam a minha história, a minha dignidade? Será que
por necessitar de uma carreira, perco o direito de ter nascido no kimbo, ter o
Umbundu como primeira língua da minha vida, ligada às primeiras memorias que
guardo com honra?!
Agora são três e um quarto, e tento voltar à cama, mendigar algumas horas de
sono. Se penso em pessoas como tu, por isso não tenho sono, ou se não tenho
sono e por isso penso em pessoas como você, isso importa. A verdade é que às
vezes apetece desistir de tudo e morrer por algumas semanas. Mas depois a nossa
consciência diz-nos não ser justo, já que ainda resta algo de que nos
orgulharmos: os amigos que temos, o espírito lutador e as conquistas acumuladas
diante de tanta impossibilidade. Força, há que erguer a cabeça, ainda que nos
pisem sobre ela!.
Por: Gociante Patissa, Lobito, 23 de Setembro de 2005
(*) Publicado
em Setembro de 2005 através dos Blogs "Desabafos Angolanos" e
"Ondaka Usongo"
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Parece que o processo de colonização ainda continua. Este é um aspecto grave. Ninguém está interessado nas línguas nacionais-maternas. Por isso as não ensinam e nem estão interessados em ensiná-las nas escolas. Aliás, os próprios dirigentes do país falam nenhuma delas. Deve ser por isso que não têm interesse algum.
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