terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Crónica | Um marido esperto e dois seguranças abelhudos


Falando da violência doméstica, um flagrante. Havia uma senhora e meia mais dois seguranças, duas metralhadoras também. Falavam ora umbundu, ora português. Na verdade, não falavam. Desabafava ela, ouviam os seguranças do banco. Uma da tarde, sol é sol, só suor, que hoje o dia foi de ar condicionado no máximo.

A mulher poisava a bacia de haveres vendáveis, entregue à fadiga de quem serpenteou as artérias da cidade com frutas nada apelativas à cabeça. Devia ter uns vinte e oito anos, que pareciam inflacionados numa escala de mais quinze, dada a condição indisfarçável da sua situação social. Padecia de gravidez. Menos mal, que isso tem cura. Pior do que isso era a pobreza entranhada na derme. Sim, já alguém o disse, a pobreza, ou miséria (a sua versão mais sofisticada), tem o poder de envelhecer as pessoas. Não no sentido saudável de agigantar o saber, lamentavelmente, mas um envelhecer na impotência e na fatalidade de nos auto-definirmos pertencentes à camada baixa.

Camada baixa é um irónico conceito de auto-exclusão, a partir do momento em que, inconscientemente, a pessoa aceita o status (tão negado no discurso) de cidadão de segunda. É o kupapata que, tentando ganhar o pão, leva com as investidas do polícia, o mesmo polícia que entretanto perde autoridade perante o menino-homem bonito que levanta a moto e faz acrobacias no recinto da escola primária.

Cidadão de segunda é qualquer um que entra na cela sem lhe passar pela cabeça que existe algo chamado advogado. Ao cidadão de segunda falta escolaridade consistente, trabalho bem remunerado, falta também a consciência de direitos, porque os deveres, estes, tem é de sobra. A fatalidade está em aceitar o círculo vicioso como legado, senão mesmo destino, e a mobilidade social de outrem como questão de sorte, uma sorte no entanto a milhas de alcance. Depois é perder o já pouco provento alimentando o poço sem fundo na teologia da prosperidade do charlatão pastor, que entra, feito broca, numa mente já habituada a só cumprir, nunca questionar.

Continuando. De cartão entre os dedos, prontos a sacar, as pessoas chegavam ao local público por sinal mas por alguns instantes feito de tertúlia íntima. Só que depois acabavam por se retirar, já desiludidas, os aparelhos não tinham dinheiro para ninguém. Dirija-se, mais é, ao próximo caixa (mais é já é o que a máquina não fala textualmente, mas deixa nas entrelinhas).

O meu marido é mesmo assim, aquilo não sei se tipo tem nojo de grávida ou o quê... - conta a mulher, para a expectativa abelhuda dos dois ouvintes armados por fora, ternos por dentro - Você fica mesmo ali deitada, filho alheio, ele já não é ele. A pessoa ainda no começo incomodava, mas tcha!... Agora sabes ele faz como? Ele como sabe mesmo já que não gosto quando o homem está bêbado andar a me segurar, agora ele, como é esperto, passa mesmo tooooodo o diaaaa na rua, já só chega em casa bem bêbado.

Gociante Patissa | Aeroporto Internacional da Catumbela, 11.12.2018 | www.angodebates.blogspot.com
Share:

0 Deixe o seu comentário:

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas