sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

[Oficina literária 34] A CRÓNICA DA LEITURA – crónica de Joaquim Lucas Vicente Lucas “Kaz Mufuma”

Abrir livros é coisa de gente sabida ou que quer saber, porque o resto os mantém fechados, escondidos em estantes e outros colocam o selo da inutilidade sobre qualquer que seja o sítio que tenha um livro. Soube disso depois de uma viagem até à pequena cidade de Ndalatando, aonde levei comigo os meus companheiros Ondjaki, Manuel Rui e o senhor Hélder Simbad, e, enquanto as quatro rodas da lata mais velha que nos carregava beijavam a raridade de asfalto que aparecia, desfilava os vários olhar sobre a paisagem na exterior idade. A natureza é mesmo uma mulher nua – faz-nos pensar que devemos tocá-la além dos limites das mãos, se os olhos não forem capazes de nos levar à tão prazerosa dança das possibilidades. Entrementes, tinha o meu amigo Ondjaki no seu “Quantas madrugadas tem a noite aberto, como as fronteiras de um país e, no meio, passeavam intercalados os meus dedos médio e polegar com a mesma frequência que chuva em Abril. As montanhas circundadas pelo capim verde, as aldeias com ares da modernidade que lhes acolheu e a cor da tarde que o sol causava, pela porta dos meus luandenses olhos, entravam as razões de sensações raras e sentidas só… aliás, nunca antes sentidas.

Quando voltava a passear sobre as letras do rebento de Ondjaki, sentia que desperdiçava uma outra boa leitura: a desordem no que chamamos de estrada também me parecia mais quente, e a suavidade no tocar dos pés ao chão dos transeuntes lá fora tinha a particularidade da gaivota-rapineira. Já imagino se fosse poeta, ia rascunhar um verso do tamanho do Lucala!

Esta não era a primeira nem a segunda vez que viajava para Kwanza Norte, mas sabia a diferença todas as vezes que levantava a cabeça e abraçava o exterior daquele carro. E, como se diz que uma viagem começa aquando da sua programação, quisemos materializá-la, colocamo-nos fora e buscamos o contacto directo com aquela terra – o Golungo era-nos mais alto que o Moco do Huambo e foi daquelas alturas que vimos as, também, suas reservas florestais e foi mais tarde que em passeio nas verdejantes margens, refrescantes como as salivas do vento, pisamos as suas praias, já no Dondo. Nestas horas, o meu amor pelos livros repousava tranquilo, lia de capa em capa as muitas linhas naturais e esfolheava cada paisagem qual leitor jovem num bibliótafo e, sem ter que molhar o dedo na língua, escorregava-me às páginas daquele belo natural. Compreendi por que um dia concordei com Mia Couto, “a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o mundo, lemos a vida.” Não será hoje que voltarei à leitura de sempre, ao barro do Cazenga e, ou ao betão armado de Luanda. E enquanto estiver aqui, meus amigos Ondjaki, Manuel Rui e Hélder Simbad ou terão de me acompanhar às vidas destas leituras ou, fechados, terão de esperar a quentura luandense; porque ler está além de percorrer com as vistas um conjunto de palavras!

Estou aqui em Kambambe a pensar em abrir o livro, como sugeriu a cantora… mas como, se há mil e uma outras poesias abertas depois do aro da janela?! Às vezes, não guardamos um livro por não gostar de ler ou por preguiça, é que existem muitos outros livros abertos bem às nossas vistas. Temos sempre uma leitura pendente!

SOBRE O AUTOR
Kaz Mufuma, nasceu em Luanda, no município do Cazenga, onde vive. É estudante de Engenharia Química na Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto; professor de Química do 2° ciclo; Editor de imagens e Designer gráfico. Participou na Colectânea de textos poéticos (Roteiro das Artes Internacional; Angola-Galiza) "Sementes da Língua" (2016). 
Share:

1 Deixe o seu comentário:

Unknown disse...

Às vezes, não guardamos um livro por não gostar de ler ou por preguiça, é que existem muitos outros livros abertos bem às nossas vistas. Temos sempre uma leitura pendente!

SENSACIONAL!
O jogo com que joga as palavras é simplesmente wauuu... parabéns caro mecânico e você sim é pesado profissional;

Saudações de Mkanambi

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas