—
Ó profissional, espera ainda! — gritava a mulher com alguma autoridade (ou ao
menos determinação) na voz. Parei de imediato. E lá vinha ela de salientes
ancas em natural coreografia.
Na
primeira vez que me chamaram por esta alcunha, Profissional, reagi com um certo
congelamento, não sabendo se aceitava ou se rejeitava. E tive mesmo de ir a
correr para o Dicionário, alcunha de um bar lá do bairro, onde professores e
jornalistas gostavam de desfilar o peso de seus
diplomas, regados com aguardente, vaidades e cerveja nacional, como se
conseguissem pagar o que consumiam sem ser a crédito e antes do fim do mês.
Profissional
é quem vive do que faz, disse-me o primeiro. Fiquei na dúvida, dado o avançado
estado de embriaguez do homem. Ora, meu caro, e disso sabe todo o gajo que um
dia sentou diante de um bom professor, profissional é quem tem sofisticação no
saber e nos meios para a tarefa que se propõe. E mal expeliu a última palavra,
o segundo orador caiu em coma, pelo que fiquei sem saber se o levava a sério ou
não. Aí, abordei um terceiro conviva, dono de uma grande boca, todavia muito
mal aproveitada, tão taciturno era o homem. Se calhar, pouco perderia a mãe
dele se parisse um mudo. Profissional é aquele que faz das técnicas a sua
segunda natureza. Confuso, dei um
soco na parede e acendi um cigarro. Caramba, pá! Como é possível haver tantos
tentáculos teoréticos sobre uma só palavra? Por fim, no triângulo optei pela
terceira acepção, isento embora de quaisquer imputações autorais. De maneira
que rapidamente me acostumei à alcunha. O meu nome de registo, já agora não sei
se o povo sabia, mas também tenho um, passou a ser nada mais do que roupa de
casa. O cliente tem sempre razão, não é isto?
—
Nunca mais te vi, ó Profissional! — exclamou a mulher, pronta a me dar os dois
beijos socialmente previstos.
—
Peço desculpas, — desencorajei-a eu. — estou a transpirar.
—
Deixa-te de formalidades!, por acaso queres vestir as culpas pelo sol?
—
Ah, pois, fico descansado pela compreensão.
—
Mas também, — prosseguiu ela. — fazes bem. Quem muito
aparece… aborrece. Estás ocupado?
—
Até, não. Venho de uma reportagem.
— Ainda bem, quero uma sessão agora em minha
casa.
—
Um momento, deixa ver se tenho comigo o flash. O resto não era nada que uma
lente fixa de trinta e cinco milímetros e o ISO alto não resolvessem, na
ausência do tripé. E pronto, confirmados os acessórios, fui com a cliente,
praguejando no disfarce a percussão do meu estômago. Era da fome. Passava do
meio-dia.
O
quarto dela era um espaço pequeno (pouco favorável para o efeito de
profundidade de campo), mas muito bem arrumado, como se andasse o tempo todo à
espera de ser fotografado. Ouvia-se insistentemente o estrépito de um insecto
qualquer vindo do compartimento ao lado. Por acaso, pareceu-me ser coisa de um
grilo, não ajudando em nada ao meu sentido de concentração. Conhecendo-me como
me conheço a mim mesmo de natureza extremamente sensorial, o normal seria a
activação da irritabilidade, verdade seja dita, mas tolerei aquele ruído.
Não
sei bem porquê. Se calhar porque o dinheiro a ganhar seria um bálsamo para
todas as maleitas, como diria o comerciante português que nos vendia o
material. Porque chega um momento nas nossas vidas em que o nosso organismo já
não nos mente. Continuando. Com a câmara em punho, anunciei-me pronto. Despiu
as calças suavemente.
Ficou
só de blusinha de alças e a roupa interior.
—
Não ligues, sou peluda.
Como
bom profissional, mantive-me inerte. Tossi um pouco só, corrijo. É isso. Por
acaso, tinha assim uma vaga ideia do que se escondia atrás do pequeno pedaço de
tecido entre virilhas. Não posso negar. Aí ela deitou-se de barriga para o ar e
dobrou aos meus olhos o joelho direito dela. Não mais de
trinta aniversários, contra cinquenta e vários meus.
Disparei
a primeira.
A seguir, abraçou forte a almofada, mas, estranhamente, sem desviar
o olhar dos meus olhos. Ocorreu-me ter sentido algo em mim a ganhar volume,
porém, sempre profissional, não liguei.
O
vento que entrava pela janela mexia ligeiramente com o penteado e produzia um
efeito inesperado, mas vantajoso, ao retrato. Ela, para mim nada mais sendo do
que uma modelo angelical, saía-se ainda mais irreverente, mais expressiva.
Despiu
a blusa em gesto brusco, expondo um par de cilindros cujo bico me fez pensar
por instantes no tecido sensível dos meus lábios, só que os olhos de fotógrafo,
como bem se sabe, são bem treinados, praticamente autómatas: um no visor, outro
fechado para não perder o foco. No ar, o cheiro a velas, eram quatro ardendo, e
a um perfume com aroma de tentação.
Virou-se
de costas e baixou para metade das nádegas a cintura do fio dental. Aí,
trémulo, talvez de fome (porque, como profissional, outra sensibilidade que não
fosse de natureza estritamente técnica não podia ser), escapou-me a máquina das
mãos. Ela abraçou-me apertadinho e selou uma nuvem de batom no meu colete de
trabalho em forma de beijo, quanto a mim um desperdício em se tratando de
inorgânica peça de tecido. Como quem sabe inequivocamente o que quer, ordenou
com a doçura de um sorriso digno de congelar no tempo para todo o sempre:
—
Carrega o botão!
—
Qual deles? Ocorreu-me a dúvida.
—
O profissional… olha que o meu pai daqui a pouco chega, e ele é amigo de
catanas. — cuidou de esclarecer.
Apenas
uma cortina transparente isolava o quarto dela do resto da casa, cujo
compartimento de entrada era a sala comum. Resgatei a máquina, quando já ia
indisfarçável a saliência na braguilha, mas não perdi a pose, afinal, sou
profissional.
—
Acho que está tudo. O trabalho fica por dez mil Kwanzas a impressão e o
digital.
E
quando eu menos esperava, ela caprichava no nicho de surpresas:
—
Ah, a sessão era tudo o que eu tinha de valor para te dar de presente na
passagem de século....
Gociante Patissa
(1978, Angola). In «O Homem Que Plantava Aves», 2017. Pág. 28-32. Editora
Penalux, Guarantinguetá. São Paulo, Brasil
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Mini glossário
Gajo
- Equivale a sujeito ou cara.
ISO
- Sensibilidade do sensor na câmara fotográfica.
Catanas
- Facões; espadas.
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