sábado, 3 de março de 2018

Crónica | Onze anos a ver aviões ou a idade de uma ambivalência

Foto ilustrativa apenas.
Quando perdi, por culpa da modéstia, a primeira oportunidade de emprego na aviação, não imaginava o que o destino me pregaria uma década mais tarde.

Em finais da década de 1990, o Isaac, um amigo de adolescência lá do bairro da Santa Cruz, no Lobito, notificou-me que uma sua tia procurava alguém com o domínio da língua inglesa para trabalhar na então Base Aérea Operacional da Catumbela, das Forças Armadas Angolanas. Ele não tinha bem a certeza da função mas como a dado momento falou em se comunicar com os voos, deduzimos logo que estaria relacionado com a torre.

Mostrei disposição para conhecer a senhora, a fim de passar pelos testes, mas cuidei também de antecipar que, tendo já o meu domínio do inglês, garantidamente, um nível acima do curso médio, era fruto do auto-didactismo. Não possuía, por exemplo, o certificado de um CELIESTRE (Centro de Línguas Estrangeiras Revolução), do renomado Mr. Germano, à época a coqueluche. Este detalhe levaria a “recrutadora” a descartar-me. Pois ainda bem. Que se lixasse! Acreditei que a aviação seria distracção no foco da vocação, a comunicação social, sobre a qual, aliás, nunca tive dúvidas.

Seguiram-se anos de interromper o segundo ano do ensino médio, em virtude de uma miséria que obrigava a calçar um par de ténis (dibengo), os dedos a roçar o chão. Nessa altura gozava já de uma certa visibilidade na qualidade de colaborador de um programa infanto-juvenil da TPA, pelo que feria ao dobro o bullying. O Eliseu Mondi Figueiredo entrava em cena com a doação de um ou outro vestuário, ou os ténis emprestados pelo António Kanganjo, antes de ganhar um par de ténis do cunhado Justo Cataca.

Não dava mais, tinha de procurar algum rendimento. Logo inscrevi-me no curso de pedreiro no IED (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento), do engenheiro Marcelino, financiado pela União Europeia. O subsídio de formando era de 25 dólares, já superior ao salário de um professor com o ensino médio. Terminado o curso, sobrevivo aos testes para a Sonamet. Dos quase 300 candidatos, se bem me lembro, só 38 chegariam à final. Fui o trabalhador número Lob 020, ajudante de soldador.

Durante os 22 meses que ali andei, nunca me conformando com a cultura organizacional racista e sectária dos franceses, idealizei e conduzi o processo de legalização da AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade), que permitiu aperfeiçoar a língua inglesa, voltar ao microfone e lançar o jornal comunitário “Boletim A Voz do Olho”. Foi também pela AJS que conheci José Patrocínio, da então Okutiuka e posteriormente Omunga, por meio de quem interagiria com uma pessoa que me apresentou à americana Nancy, da escola de inglês. Até que um dia uma empresa que precisava de alguém com habilidades em comunicabilidade e domínio do inglês recorre à escola da Nancy…

E pronto, são passados 11 anos desde que num dia como hoje, no ano de 2007, deu-se o vínculo em busca de uma certa estabilidade. No ano seguinte, por ironia, sucedo nos testes para posição de destaque na informação da Rádio Mais do Lobito, mas acabei abrindo mão do que tanto almejava. E cá estou no atendimento ao passageiro em terra, área não apaixonante de todo. É muito stress, na realidade angolana, onde a desorganização é lei.

Gabo-me, entretanto, de ter testemunhado avanços no sector, a destacar o aperto do Instituto Nacional da Aviação Civil (INAVIC) na certificação das companhias, que levou ao encerramento de várias e também reduziu os acidentes. Vivi a passagem dos bilhetes físicos para a era electrónica e a construção do aeroporto internacional da Catumbela. Se desisti de um dia me formar e trabalhar em comunicação? Aceito as limitações que a vida impõe, mas nunca me conformo. Esta crónica assinala o primeiro aniversário na segunda década que coincide com a mudança na presidência. Ainda era só isso. Obrigado.

Gociante Patissa | Catumbela | 03.03.2018 www.angodebates.blogspot.com
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