"Saluquinha voltava ao convívio público, uma questão de geografia e casualidade, não de socialização. Andava só. Pedia urgência em tudo: no copo de leite, no engarrafamento, na fila de combustível. Ninguém a levava a sério, nem a mal. Seus maus humores eram vistos como sinal de amor pelo falecido, ou para os mais materialistas, pura crise de viuvez, muito popular causalidade. A única vez que se tentou abrir não lhe saiu proveitosa.
— B'o noite, sinhô agente.
— Ainda é b’u tarde, mi’a sinhora, o sol não cedeu.
— Posso falar contigo?
— Bom, tem que ser rápido. Estou na porta d’arma, sabes que a UPIP é ao lado do Palácio do Governador. Aqui é praia, movimento, portanto…
— Então, para te facilitar o trabalho, me algema já…
— Não posso algemar assim uma pessoa sem motivo, como na guerra.
— Então, com algemas não é mais fácil dirigir?
— Nós trabalhamos com moral e cívica. Algema, se há risco de fuga ou perigo.
— Mas, mano, quem te garante que não vou fugir e não sou perigosa?
— Ha!, ha!, ha!, isso até é azar! Assim vais fazer o quê, me violar, eu, com AK47?
— Eu é que estou a falar então, ó chefe… Você não me conhece…"
Gociante Patissa, trecho do conto O CALENDÁRIO DA VIÚVA, um dos 13 que compõem o livro de contos FÁTUSSENGÓLA, O HOMEM DO RÁDIO QUE ESPALHAVA DÚVIDAS, já no prelo, com publicação provável em 2014
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