Aos 18 anos despontou para o
estrelato ao participar em concursos musicais com a envergadura que se pode
imaginar de estações como a SIC e a RTP. No primeiro, buscando vingar nos “Ídolos”,
no segundo, chegando à final da “Operação Triunfo”. É da angolana Katiliana
Kapindiça que falamos, formada em música pela Universidade de Leeds, na Inglaterra, e dona de uma plasticidade interessante. Vocalista, já fez coros para
um dos elementos Semba Master, Lanterna. Fez ainda “algumas coisinhas”, assim
lhes chama, no hip-hop, para além da participação numa música gospel de Jeff
Brown e Jay Lorenzo. Tem em vista um CD mas nisso vai com cautela, acredita que
precisa de divulgar mais o seu trabalho, uma lucidez de quem afinal já apagou 30
e tal velas. De volta há dois anos ao país que a viu nascer, vai-se dando a
conhecer no areópago artístico por conta do seu vozeirão e energia em palco. Nesta
segunda parte da grande entrevista exclusiva que concedeu ao Blog Angodebates,
Katiliana, com a sempre invejável perspicácia, critica vícios dos meandros do
mercado musical, vícios estes que tanto excluem, como empobrecem o crescimento.
Blog Angola, Debates & Ideias (Angodebates): A outra pergunta
que eu ia colocar é a seguinte: em tempos a TPA passou um show de jazz, creio,
de vários artistas e uma delas é a Katiliana. Há, assim, entre nós uma
tendência de associar a marca artística Katiliana ao jazz. Com que estilo é que
mais se identifica? Como é que posiciona?
Katiliana: É assim, eu acho que sou uma
ecléctica, não é? Se me perguntares, por exemplo, fora do jazz ou fora do soul
music ou, por exemplo, do blues ou da nossa kilapanga, masemba, a própria
música que o Ndaka faz (que é muito riquíssima), não vai acreditar. Mas eu
gosto de ouvir coisas assim completamente que não têem nada a ver comigo…
Angodebates: Coisas assim
experimentais?
Katiliana: Vou-lhe dar um exemplo, o heavy
metal. Eu oiço, mas não oiço no sentido de gostar, mas sim no sentido de
auto-didáctico…
Angodebates: Ouvir para pesquisar?
Katiliana: Pesquisar por que é que eles fazem
aquele estilo de música, as mensagens são muito obscuras, são muito obscenas,
são muito associadas à religião, portanto criticar a religião, está a ver? E eu
gosto muito de pesquisar sobre estes assuntos bastante pertinentes.
Angodebates: A sua família como é
que olha para a sua carreira, como é que olha para os desafios, a própria
envolvência musical, por exemplo estar neste momento em Benguela? Ou seja,
recebe apoio, recebe aceitação?
Katiliana: Muuuuito! Às vezes, se calhar, eu penso que
eles é que são as Katilianas e eu sou…
Angodebates: Já tem família
própria?
Katiliana: como?
Angodebates: Já tem família
própria, constituída?
Katiliana: Não, ainda não. Não sou casada e
ainda não tenho filhos.
Angodebates: Pois, isso se calhar
dá-lhe um bocadinho mais de flexibilidade?
Katiliana: A minha família… eu tenho pessoas
da família que também cantam…
Angodebates: Ai, é? Qual é o grau
de parentesco com essas pessoas?
Katiliana: Tios-avôs. O Elias Dya Kimwezu
também. Ele é como se fosse assim um primo como irmão do meu pai. Da parte do
meu pai. Da parte da minha mãe tenho a tia Lourdes Van-dúnen (falecida). Ela
era minha tia-avó.
Angodebates: Então é uma questão
genética, não é?
Katiliana: Pois. Mas, pronto. Assim da família
mais próxima é portanto o pai, a mãe, os primos assim mais próximos, estão
sempre a apoiar, estão sempre a ajudar. Inclusive houve uma altura da minha
vida que eu acho que a música já não era uma grande prioridade, e eles foram
assim uma fonte fortíssima para me dar apoio. Porque eu disse que não, já não
quero mais cantar.
Katiliana: Eu acho que era por causa da
persistência também, porque chega uma altura em que tu na vida tens de dar
prioridade a outras coisas, não é?
Angodebates: Qual é a sua área de
formação?
Katiliana: Gestão internacional de hotelaria e
viagens.
Angodebates: Wow! Mas isso também
acaba por alargar o seu horizonte…
Katiliana: Também.
Angodebates: Uma visão mais
cosmopolita das coisas?
Katiliana: Mas eu fui mais por uma segunda
opção.
Angodebates: Qual seria a primeira?
Katiliana: Música! Então acho que pelo facto de estar sempre a tentar, a lutar, embora
desenvolvi muito a parte pedagógica, não é? Quando eu fui para a Inglaterra,
fiz o meu curso de jazz…
Angodebates: Quanto tempo é que
ficou na Inglaterra?
Katiliana: Fiquei quase dez anos.
Angodebates: Eh pá! É mesmo
cosmopolita, ou um pouco mais do que isso. (risos)
Katiliana: Também. Formei-me lá. Mas, lá está, é
aquilo que eu disse. Eu sou uma cidadã do mundo, eu não esqueço...
Angodebates: As raízes?
Katiliana: Exacto, aquilo que me identifica.
Devo confessar que houve uma altura, depois de muito tempo não estar aqui na
terra, que eu cheguei a uma altura mesmo de não me auto-identificar como
angolana.
Angodebates: Pois. A distância tem
esse efeito.
Katiliana: Tem muito este efeito.
Angodebates: Várias vezes, as
notícias que nos chegam são sempre negativas…
Katiliana: E não só isso. Sabes que na Europa,
a imagem conotada que eles têem de África…
Angodebates: É de desgraças?
Katiliana: Não. É de um menino pobrezinho,
esqueleto sem pele, que não há nada. Já me perguntaram se havia cadeiras aqui…
Angodebates: (risos) Estou a
perceber. É uma distorção da imagem do africano.
Katiliana: Por exemplo a Inglaterra é muito
assim.
Angodebates: O exotismo?
Katiliana: Como é África? Aquilo é só savanas,
leões?
Angodebates: Também os que vêm de
lá vão para a Namíbia e fazem aquelas fotos que saem em revistas exóticas, não
é?
Katiliana: Ah, vocês têem cadeiras? Vocês têem
carros?
Angodebates: E como é a reacção da
Katiliana a este tipo de mais ou menos provocação indirecta?
Katiliana: Acho que nem tudo é uma questão de
provocação, é mesmo falta de informação. Porque as pessoas até estão
interessadas em querer saber sobre a África, porque dão muito aquelas imagens,
as pessoas seguem muito o National Geographic, as savanas, principalmente no
Gana, África do Sul, também já vieram gravar aqui em Angola. Então passam muito
essas imagens. Ou seja, eles nunca dão muito a parte…
Angodebates: Do desenvolvimento urbano?
Katiliana: Exacto, a parte do desenvolvimento
urbano, é mais o rural, reservas naturais. Eles adoram isso, gostam disso. Só
que também ficam numa de ‘espera lá, só isso que existe? Será que as pessoas lá
só andam mesmo de’… Como é?…
Angodebates: De tangas?
Katiliana: …Pois. De tanguinhas e as meninas
andam assim com as maminhas à mostra?
Angodebates: É uma visão quase
colonialista, é uma visão colonial, essa de exótica?
Katiliana: Mas é impressionante, ainda existe.
Não digo muito em Portugal, mas na Inglaterra ainda existe. Porque existem
ingleses que nem sequer ainda andaram também de avião, não é? Então é aquela coisa de muito
fechados, porque também têem um país que tem tudo…
Angodebates: O mundo desenvolvido
têem esse problema, não é? Como os americanos, alguns que nascem, crescem e
morrem sem terem necessidade mínima de sair do seu país…
Katiliana: Exactamente.
Angodebates: Ok. Deixando um
bocadinho essa parte sociológica, vamos voltar para aquilo que são projectos,
aspirações da Katiliana. Está em Angola há dois anos, em que é que está
envolvida neste momento?
Katiliana: Bem, agora estou agora envolvida
aqui com este festival, não é?, o Acácias-Fest. É um convite da Ombenje
Produções e que, pronto, eu recebi com muito gosto. E acho que era um convite
que já deveria ter sido feito há algum tempo, mas pronto… [apontando a
indirecta para o músico Ndaka Yo Wiñi, que acompanhava a conversa]. Ele sabe o
porquê…
Katiliana: Mas, lá está, mais vale tarde do
que nunca. Eu estava já ansiosa que viesse este convite há mais tempo.
Angodebates: E como é que é por Luanda em termos
de oportunidades? Tem tido ou acha que o género que cultiva não é o que os
holofotes imediatos mais procuram?
Katiliana: Eu não gosto muito de pensar que
isto é uma lamentação mas é uma crítica construtiva que eu faço. Porque eu acho
que há – não sei se posso chamar isso, posso estar um bocadinho a exagerar mas há – um certo monopóliozinho, que só uns é que…
Angodebates: Mas isso é um facto.
Por vezes até ocos em termos de estética do produto que se promove. Por vezes é
o oco.
Katiliana: Lá está, nós estamos tão obcecados
pelo facto de queremos ser um país ‘number one’ a nível cultural, a nível de
tudo, mas é preciso primeiro partir da mentalidade do próprio angolano.
Angodebates: Da base.
Katiliana: Sim, da base. Quando eu digo
mentalidade base, é a própria valorização do reconhecimento nacional. Seja
norte, sul, este.
Angodebates: No segmento que a
Katiliana cultiva vai tendo um ou outro espaço. Quer dizer, há este lado
negativo e pernicioso que é o monopólio. Quanto a mim, torna-se ainda
duplamente pernicioso, em minha constatação, principalmente porque o produto
que se quer promover, na verdade, é oco, do ponto de vista da consistência
musical.
Katiliana: Sim. Acho que também existem poucos
corajosos que queiram embarcar nesta odisseia. Eu digo corajoso no sentido de
serem um ou dois ou três que aparecem e que fazem esse tipo de eventos, não é?
Um daqui, um dali, mas eu acho que parte do princípio que não deverá ser um ou
dois. Eu acho que as pessoas têem de se consciencializar que nós também somos
Angola.
Angodebates: Com certeza!
Katiliana: Não é só o tal supostamente
comercial, que vende, que faz as músicas, que é o fixe. Mas nós também somos
esta parte cultural.
Angodebates: Até porque, como povo,
temos várias sensibilidades. Se temos um país com diversidade, era suposto essa
diversidade ser transversal…
Katiliana: Exactamente. E é triste. Eu já
falei com outras pessoas que já estão há mais tempo nesta lida cá, nesta luta,
nomeadamente a Afrikhanita, que é minha prima, não é?
Angodebates: Ai, é? A Eunice José?
Katiliana: É, é família. E então ela está
nessa luta já há um certo tempo, e realmente há ofertas descabidas que ela já
recebeu.
Angodebates: São atentatórias, no
sentido do assédio?
Katiliana: Não, gravar kizomba. Só apostamos
para kizomba. Para essas coisas do jazz, essas fusões, essas coisas muito
culturais, do coiso, não. A gente não vamos te querer investir. E é triste
porque eu já não vou falar mais de um Estados Unidos, de uma França ou de uma
Inglaterra, que é um país bastante multi-cultural, mas vou falar do caso do
Brasil. Lá paira ‘n’ de diversidades de estilos, que são os casos do forró, o
samba, o pagode, a bossa nova…
Angodebates: Pois, a bossa nova que
– eu não sou músico, mas vá lá – em termos de harmonia parece soar dissonante,
mas tem público.
Katiliana: Exacto. E é como se fosse uma
bandeira firmada do Brasil. Quem conhece a bossa nova, os americanos adoram e
vão buscar os clássicos, dos Jobins das Elis, dos Valis, Vinicius de Moraes,
vão buscar este pessoal todo para estarem a reformular ali o seu repertório.
Portanto nós vamos a estes países e vemos uma variedade. Nós aqui…
Angodebates: Podíamos até fazer um
copy/paste?
Katiliana: Aqui se tu não és kizombeiro –
porque é mesmo assim, desculpa. Se não és kizombeiro, és posto um pouco de
parte. E só um ou outro é que se lembra, ‘eh pá!, vem, eu gosto da tua música,
eu aprecio a tua música.’
Angodebates: A media tem responsabilidade. Ou não? Há programas de kuduro mas…
Katiliana: Mas nós também temos que ver que há
uma máquina financeira por detrás.
Angodebates: Pois. O poder
influencia.
Katiliana: Porque não podemos também pôr a
carroça à frente dos bois. Estas instituições também precisam de ganhar. É
assim que acontece lá fora. Só que acontece de uma forma bastante inteligente.
Porque existe o mercado do world music, do jazz, existem vários festivais, não
é? Existem festivais que se calhar não são conhecidos mas muitos músicos,
principalmente do world music, e mesmo a nível de África, saem daqui para
fazerem festivais lá fora.
Angodebates: Têem visibilidade lá
fora mas não têem cá dentro?
Katiliana: Exactamente. Nós tínhamos um festival, que acabou. Acabaram com o festival. O
International Jazz Festival de Luanda, em que um George Benson esteve cá, uma
Diana Reevs esteve cá. E eh pá! Era uma forma de intercâmbio para músicos
angolanos, e acabou-se com isso.
Angodebates: Quem é que organizava
este festival?
Katiliana: Não sei quem organizava porque na
altura eu não estava cá a viver, mas eu acompanhava muito e acompanhava os
músicos que também fizeram parte do festival. Era uma porta espectacular, não
só para a promoção do nosso país – porque era o nome de Angola que estava ali –,
como também promover o intercâmbio. Hoje, se calhar, poderíamos ver talvez um
Ndaka [Yo Wiñi] a trabalhar com um George Benson, por exemplo, porque ele ouviu
a música do Ndaka. Mas nunca acabam com os palcos de Unitéis, e essas coisas…
Angodebates: Pois. Os outdoors
estão lá.
Katiliana: Então é um bocadinho triste. Eu
fico muito triste. Tudo bem, nós temos esta responsabilidade social, mas essa
responsabilidade social só paira para os tais supostos monopolizantes, mas para
o resto… não.
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