sexta-feira, 18 de maio de 2018

“CUSPIRAM-ME NA CABEÇA”, KATILIANA | Grande entrevista exclusiva com a cantora (1ª parte)

Katiliana Kapindiça juntou-se às comemorações dos 401 anos da cidade de Benguela, tendo animado a primeira noite do Acácias-Fest, na companhia de outra figura relevante do Afro Jazz, o Ndaka Yo Wiñi. Mistura de Bié com Luanda, Katiliana teria o essencial em termos de valências para ser cantora de sucesso no mercado angolano, a saber, um rosto lindo e uma fisionomia vistosa, mas ela foi mais longe: tem mesmo um talento e também sólida consciência cidadã. A sua veia musical pode-se dizer que é sanguínea, ou não tivesse parentesco com Elias Dya Kimwezu e com Lourdes Van-dúnem. Bem formada e com o dom da palavra, a conversa com ela flui de tal modo que nem damos conta do tempo passar. Esta é a primeira parte de uma grande entrevista exclusiva que concedeu ao Blog Angodebates. Falamos de tudo um pouco, a começar pela sua experiência de adolescente a viver na diáspora (marcada por actos de racismo no ambiente escolar). Falou também do lado bom, com destaque para a participação na OPERAÇÃO TRIUNFO, concurso musical da RTP em Portugal, a vivência na Inglaterra e dos dois anos de retorno a Angola. Katiliana tem uma visão profunda das coisas, coloca o dedo na ferida das makas da coisa cultural e não deixa de sugerir caminhos para quem tem ouvidos para ouvir.
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OUVIR O ÁUDIO
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Blog Angola, Debates & Ideias (Angodebates): A Katiliana é uma daqueles talentos que entram em nossas vidas num contexto de apelo à união para apoio. Porque para muitos de nós, a Katiliana surge na “Operação Triunfo”. Penso que já andará farta de falar disso, mas gostaria um bocadinho que contasse, assim em termos de retrospectiva, como é que foi a experiência.

Katiliana: Muito antes da “Operação Triunfo” eu já tinha… Praticamente eu lancei-me no “Rádio Pió”. Exacto. Foi basicamente, em 1989-90, em que na altura nós vivíamos no bairro do Kassenda. E dali para aquela zoa do 1.º de Maio, onde se destacava a Rádio Nacional (RNA), não havia vagas de creches. Então, os meus pais colocaram-me a mim e a minha irmã na creche da RNA. E posteriormente, a senhora Maria Luísa Fançony, uma das mentoras do projecto “Rádio Pió”, teve a amabilidade de o relançar novamente. Eu fui uma das crianças [contempladas] naquela altura(…)

Angodebates: Deduzo que é natural de Luanda.

Katiliana: Sim, sou. Sou de Luanda mesmo.

Katiliana: E entretanto, logo tive várias actividades, desde a dança ao teatro. O canto não digo muito, mas mais o teatro e a dança. E obviamente como já tinha muitos artistas antecedentes a mim, neste caso o Mamborrô, o Lucas de Brito (que agora é Maya Cool), o Ângelo Boss também…

Angodebates: E a Isidora Campos?

Katiliana: Também, mas trabalhei mais com estes. Tive a possibilidade de trabalhar com eles, principalmente com o Maya Cool. Depois, foi aí que surgiu a “Operação Triunfo”. Foi assim, digamos, um pontapé, mas muito antes da “Operação Triunfo” eu também tinha participado nos “Ídolos”, mas era em castings, para ser apurada. Pronto, e infelizmente fui eliminada. Fiquei entre os 50 melhores…

Angodebates: O que não era nada puco (risos).

Katiliana: Exactamente. Porque só por dia de audições, eram por aí 3 mil pessoas. Então, estar entre os 50 melhores, nos “Ídolos”, já era muito bom.

Angodebates: A sua vivência na diáspora é contabilizada em quantos anos?

Katiliana: Eu cresci praticamente em Portugal. Os meus pais, em 1997-98, decidiram emigrar porque também na altura o país não estava em condições. Na altura tinha para aí os meus 13 quase para 14 anos.

Angodebates: Adaptou-se facilmente?

Katiliana: Não, não! Não foi fácil.

Angodebates: Principais dificuldades quais foram?

Katiliana: Racismo! O racismo foi assim algo que eu… Eu nunca soube o significado da palavra racismo, até estar num território europeu.

Angodebates: Ainda, sobretudo na realidade europeia/Portugal, há muita gente a relativizar e a sofismar. Quando a Katiliana se refere ao racismo, quer contar algum episódio concreto que é para se ter a certeza?

Katiliana: Bem!… Eu tenho muitas memórias mas é mais na questão da escola, não é? Porque eu fiquei durante três anos a ser a única negra da escola. Não tinha ninguém de raça negra.
 
Angodebates: Isto em si punha pressão sobre si?

Katiliana: Também. Porque eu muitas das vezes ficava no intervalo sozinha. Às vezes as minhas colegas vinham ter comigo mas havia aqueles grupinhos da escola, que gostavam muito de se meter e diziam: ‘ah, vai-te embora! Este país não é teu. Olha, aqui está escuro’ (risos)

Angodebates: Era um ambiente que podemos caracterizá-lo como bullying, não é?

Katiliana: É, mas era um bullying mais racial, não é? Porque não era muito na questão da característica, por exemplo ser gorda ou ser magra. Era mesmo o tom de pele que ali frisava mais. Então eu tive muitas recordações mesmo assim muito más, principalmente ainda – não sei se posso contar esta…

Angodebates: À vontade.

Katiliana: Inclusive tive uma que foi assim mesmo muito triste, que eu até já não quis voltar à escola, que foi o facto de me terem cuspido na cabeça. Cuspiram-me na cabeça. Estava no intervalo, os rapazes estavam no piso de cima e veio a porcaria na minha cabeça. Ah, ‘fizemos isso porque tu és preta’ (risos).

Angodebates: Tiveram ainda a ousadia de se identificar?

Katiliana: Sim. Não tinham problemas. Para eles aquilo era muito “normal”, porque até então, finais dos anos 90, o racismo em Portugal era muuuito presente. Estava muito presente sobre as pessoas, mesma não só a nível dos angolanos, como também os moçambicanos. Os da Guiné então, pior.

Angodebates: Eu penso que não se deve arranjar nenhuma justificação para o racismo mas há sectores de Portugal e de outros países, que consideram essas manifestações como sendo consequência, digamos, natural de uma postura de ostentação. Acha que a ostentação dos angolanos lá justifica este tipo de repulsa?

Katiliana: Eu acho que de princípio não era muito a ostentação mas sim o facto de ser o negro emigrante, não é? Que chegava lá, ia para as obras, porque era assim. E na questão da mulher, era a questão das limpezas. Trabalhar na limpeza, no restaurante. Nós, neste caso angolanos, angolanas, não é?, tive esta experiência com a minha irmã mais velha e com a minha mãe. Elas tinham que dizer nós somos formadas. Então o que é que sabemos fazer de melhor? Cozinha. Cozinhar. Então aquilo ela uma exploração mas não a nível da ostentação, porque até então não era o tal suposto reconhecimento que os angolanos na altura tinham.

Angodebates: A Katiliana é de uma família de quantos irmãos?

Katiliana: Da parte do meu pai eu tenho dois irmãos. Da parte da minha mãe também tenho dois irmãos. Ou seja, os meus pais antes de se juntarem, já tinham relacionamentos anteriores. E quando se juntaram, veio eu, a minha irmã que está em Pais e mais uma que faleceu. Assim de pai e mãe só somos duas.

Angodebates: No meio de tantas dificuldades, já agora para encerrar este tema da adaptação, de onde é que buscava forças para não desistir? 

Katiliana: Eu acho que era a persistência. É. Era muita persistência de ‘não, olha eu vivo aqui, eu estou cá’. Portanto, adaptei-me a um novo estilo de vida e então eu tenho que que continuar, não posso desistir. Mas houve momentos ali muito difíceis para mim. Foram mesmo muito complicados.

(continua)
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