sábado, 11 de fevereiro de 2017

Opinião | MENOS INTRANSIGÊNCIA JURÍDICA, “CAMARADA VICE-PRESIDENTE”!

Cresci a ver a azáfama do pai à hora dos noticiários das 13h00 e 20h00 respectivamente. Numa Angola dilacerada pela guerra civil, o partido/estado/governo fazia questão de garantir um pequeno "rádio de funções" em AM e MW aos governantes de base.

Podiam-lhes faltar confortos destes que hoje se assistem, podiam circular no exercício da administração comunal sobre a carroça de um tractor agrícola, mas nunca sem o cabaz de um radito a pilhas para acompanhar as orientações directoras centralmente emanadas e, principalmente, as nomeações e exonerações. De sorte que alguns nomes passaram a fazer parte do processo do enriquecimento da nossa cultura geral. Porque até a massa elegível não era assim muito variável. Saía-se quando muito de um posto para outro, ou regressar de um “defeso”, e só muito raramente brotavam surpresas da real base (mas era mister manter aceso o facho da aspiração). 

Às vezes víamos o pai saltitar de alegria pela nomeação de quadros da sua lista de modelos patrióticos. Chegou mesmo ao ponto (hoje vejo como infeliz) de atribuir a um filho o nome de um certo governante benguelense (e creio que professor na Escola Provincial do Partido, entre 1986-1989), nome de pronúncia tónica que se confundia entre o gaulês e o cabo-verdiano (nunca soubemos o significado). Vivia-se o pico do comunismo e  a renegação da herança cristã do seu pai catequista e preso político de São Nicolau.

Em resumo, admirávamos, como à bandeira e ao hino, os governantes e os combatentes da nação. E foi pois com elevada desilusão que nestes últimos cinco anos vimos um camarada Bornito de Sousa, um patriota e combatente, de repente argumentar, nas vestes de Ministro da Administração do Território, uma lógica contrária à rotura ideológica por que sempre se lutou e nos “independentamos” como país.
Foi durante o consulado que o MAT entendeu repescar decretos da era colonial que castraram dos nomes das localidades consoantes como K, W, Y.

O meu consolo é saber que os mortos não sabem ler e, valha-nos isso, o camarada Victor Manuel Patissa (falecido em 2001) não terá o desgosto de saber que o Kwanza, rio que dá nome a duas províncias e à moeda nacional passou oficialmente a "Cuanza", nem que o Kwando Kubango (dos rios Kwandu e Kuvangu) passou a "Cuando Cubango", menos ainda que o Kunene passou a qualquer coisa semelhante ao "cu" de "nené".

Já especulei em tempos que, se fosse na língua Umbundu, o topónimo Kunene (de origem Bantu) seria a aglutinação do prefixo "Ku", que tem o papel de locativo (no, na), com o adjectivo "unene", que significa grande. Assim, arriscaria em dizer que a palavra Kunene (ku+unene) tem o significado de "na parte grande; na grandeza", o que não sabemos ao certo se homenageia o território ou a bravura da sua gente.

De qualquer modo, os falantes de Oshikwanyama têm a palavra. Até lá, uma coisa é certa: Cunene, com C de cu, não significa mesmo nada! Ah, e o Namibe município, sabe-se lá por que lobby, voltou a ser "Moçâmedes", que ao que consta homenageia um aristocrata colonial da região portuguesa chamada Mossamedes. Cá por mim não “panicaria” tanto, mas houve entre nós quem já receasse voltarmos a transaccionar com Escudos. Escusado é dizer que os actos de estado não devem ser pessoalizados.

O que no entanto não podemos é deixar de seguir receando que, por defeito de formação, o futuro vice-presidente da república mantenha os horizontes com base na intransigência do Direito, esquecendo-se na sua acção da transversalidade das causas da nossa luta, história, do mosaico etno-linguístico, da idiossincrasia, que por acaso nem sempre assenta numa base ocidental (a da matriz oficial da nossa "civilização").

Camarada vice Bornito, não é nada de pessoal, mas como neto de preso político (1961-1966) e filho de militante/governante (1974-2001) que doou tudo de si (incluindo a estabilidade psico-social), move-me o direito/dever cidadão de redobrar a voz. Teremos tempo de mostrar à África e ao mundo, mas começar por mostrar aos angolanos já não é pouco. Há que ouvir outros sectores no princípio da interdisciplinaridade.

Há que investir nas línguas nacionais, no que volto a defender: para um Estado que nasceu em 1975, e com tudo por fazer no campo sociolinguístico (pois a prioridade até 2002 foi, obviamente, dada à busca da paz e estabilidade nacional), sensato seria abraçar, estudar, classificar, normatizar. Faria sempre melhor justiça à história. Há que perceber que há uma dimensão de Angola que não cabe em documentos nem na “dicção padrão”. Ainda era só isso. Obrigado.
Gociante Patissa (licenciado em linguística)
Benguela, 11 Fevereiro 2017
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