Cresci a ver a azáfama do pai à hora dos
noticiários das 13h00 e 20h00 respectivamente. Numa Angola dilacerada pela guerra civil, o partido/estado/governo fazia questão de garantir um pequeno "rádio de funções" em AM e MW
aos governantes de base.
Podiam-lhes faltar confortos destes que
hoje se assistem, podiam circular no exercício da administração comunal sobre a
carroça de um tractor agrícola, mas nunca sem o cabaz de um radito a pilhas
para acompanhar as orientações directoras centralmente emanadas e,
principalmente, as nomeações e exonerações. De sorte que alguns nomes passaram
a fazer parte do processo do enriquecimento da nossa cultura geral. Porque até a massa elegível não era assim muito variável. Saía-se quando
muito de um posto para outro, ou regressar de um “defeso”, e só muito raramente
brotavam surpresas da real base (mas era mister manter aceso o facho da aspiração).
Às vezes víamos o pai saltitar de
alegria pela nomeação de quadros da sua lista de modelos patrióticos. Chegou
mesmo ao ponto (hoje vejo como infeliz) de atribuir a um filho o nome de um
certo governante benguelense (e creio que professor na Escola Provincial do
Partido, entre 1986-1989), nome de pronúncia tónica que se confundia entre o gaulês
e o cabo-verdiano (nunca soubemos o significado). Vivia-se o pico do comunismo
e a renegação da herança cristã do seu pai catequista e preso político de São
Nicolau.
Em resumo, admirávamos, como à bandeira
e ao hino, os governantes e os combatentes da nação. E foi pois com elevada
desilusão que nestes últimos cinco anos vimos um camarada Bornito de Sousa, um
patriota e combatente, de repente argumentar, nas vestes de Ministro da Administração
do Território, uma lógica contrária à rotura ideológica por que sempre se lutou
e nos “independentamos” como país.
Foi durante o consulado que o MAT entendeu repescar decretos da era colonial que castraram dos nomes das localidades consoantes como K, W, Y.
Foi durante o consulado que o MAT entendeu repescar decretos da era colonial que castraram dos nomes das localidades consoantes como K, W, Y.
O meu consolo é saber que os mortos não
sabem ler e, valha-nos isso, o camarada Victor Manuel Patissa (falecido em
2001) não terá o desgosto de saber que o Kwanza, rio que dá nome a duas
províncias e à moeda nacional passou oficialmente a "Cuanza", nem que
o Kwando Kubango (dos rios Kwandu e Kuvangu) passou a "Cuando
Cubango", menos ainda que o Kunene passou a qualquer coisa semelhante ao
"cu" de "nené".
Já especulei em tempos que, se fosse na língua Umbundu, o topónimo Kunene (de origem
Bantu) seria a aglutinação do prefixo "Ku", que tem o papel de
locativo (no, na), com o adjectivo "unene", que significa grande.
Assim, arriscaria em dizer que a palavra Kunene (ku+unene) tem o significado de
"na parte grande; na grandeza", o que não sabemos ao certo se
homenageia o território ou a bravura da sua gente.
De qualquer
modo, os falantes de Oshikwanyama têm a palavra. Até lá, uma coisa é certa:
Cunene, com C de cu, não significa mesmo nada! Ah, e o Namibe
município, sabe-se lá por que lobby, voltou a ser "Moçâmedes", que ao
que consta homenageia um aristocrata colonial da região portuguesa chamada
Mossamedes. Cá por mim não “panicaria” tanto, mas houve entre nós quem já
receasse voltarmos a transaccionar com Escudos. Escusado é dizer que os actos
de estado não devem ser pessoalizados.
O que no entanto não podemos é deixar de
seguir receando que, por defeito de formação, o futuro vice-presidente da república mantenha
os horizontes com base na intransigência do Direito, esquecendo-se na sua acção da transversalidade das causas da nossa luta, história, do mosaico
etno-linguístico, da idiossincrasia, que por acaso nem sempre assenta numa base
ocidental (a da matriz oficial da nossa "civilização").
Camarada
vice Bornito, não é nada de pessoal, mas como neto de preso político
(1961-1966) e filho de militante/governante (1974-2001) que doou tudo de si (incluindo a
estabilidade psico-social), move-me o direito/dever
cidadão de redobrar a voz. Teremos tempo de mostrar à África e ao mundo, mas começar por mostrar aos angolanos já não é pouco. Há que ouvir outros sectores no princípio da interdisciplinaridade.
Há que investir nas línguas nacionais,
no que volto a defender: para um Estado que nasceu em 1975, e com
tudo por fazer no campo sociolinguístico (pois a prioridade até 2002 foi, obviamente,
dada à busca da paz e estabilidade nacional), sensato seria abraçar, estudar,
classificar, normatizar. Faria sempre melhor justiça à história. Há que
perceber que há uma dimensão de Angola que não cabe em documentos nem na
“dicção padrão”. Ainda era só isso. Obrigado.
Gociante Patissa
(licenciado em linguística)
Benguela, 11 Fevereiro 2017
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