Prender
para investigar ou não investigar simplesmente são certamente nuances presentes
nas representações sociais que fazemos da ação da nossa polícia. Uma polícia
incapaz de agir com prontidão diante de situações comuns não obtém dos cidadãos
senão uma vaga ideia de obstáculo à sua vida (a polícia em certa medida
atrapalha).Este é um olhar.
Há,
contudo, outro olhar que nos permite ver uma polícia aguerrida, sacrificada e
quase mágica. Uma polícia que combate criminosos do século XXI socorrendo-se de
técnicas e equipamentos do século XVIII. Esta mesma policia que serviu-nos na
guerra civil de 1992 em Benguela e demais cidades de Angola e conduziu de modo
exemplar o desarmamento da população em 2008. Não consigo deixar de ver assim,
também, a nossa polícia.
Não
é de todo difícil auferir o grau de sucesso das forças policiais em tarefas de
rotina. As polícias de trânsito e de ordem pública com as quais mais
interagimos dada a natureza da sua atividade, brindam-nos todos dias com
exemplos de grosseira inoperância por essa Angola a dentro. Essa inoperância
não é só por omissão (uma polícia que não faz ou pouco faz), mas sobretudo por
obliteração da sua atividade (uma polícia que faz o não deve ou faz mal o que
deve).
Apreender
quantidades colossais de ukupapatas, taxistas, aplicar multas de modo
indiscriminado ou privar os cidadãos da sua liberdade sem prévias provas não são
indicadores de “boa atividade”, se eles não tiverem sido precedidos de
admoestação ao cidadão ou da instrução de competente processo a nível cível ou
criminal. Definitivamente, apreender não é a função principal da polícia da
“boa atividade”, assim como não é apanágio dos verdadeiros tribunais se
excederem nos prazos das prisões preventivas.
A
atividade policial está ela, em si mesma, eivada de certas infelicidades. Ou
seja, a se a polícia, por lado, deve ser amiga da comunidade, para nela buscar
e encontrar a necessária legitimidade dos seus atos, por outro, o êxito da sua
atividade poderá implicar a “remoção” coerciva de um membro ou bem dessa
comunidade o que, gera sempre incompreensões por parte dos restantes comunidade
ou, no mínimo, por parte daqueles que são mais diretamente tocados. Este
carácter sempre volátil da relação das polícias com as comunidades exige de
ambas um certo “jogo de cinturas”, onde geralmente os cidadãos são os que mais
“rebolam”.
Mesmo nas sociedades que conseguiram ao longo dos anos atingir um
elevado nível de organização e funcionamento das suas forças policiais este
fato não está excluído. Parece-nos um problema sempre imanente à natureza dessa
relação e que independe da capacidade dos seus atores.
Não
é por isso, que devemos nos escusar de refletir sobre a relação da polícia e a
comunidade. Aliás, tem já havido debate e até mesmo estudos de reconhecida
qualidade a este respeito [1]
sobre a realidade angolana.
Em
virtude de, presentemente, assistirmos à corrida a reorganização, capacitação e
modernização do efetivo material e humano da polícia nacional no nosso país,
urge repensarmos o seu papel no quadro dos valores socioculturais do povo
angolano em articulação com as construções societárias de sanção, justiça e
proteção.
Profecias
à parte; qualquer plano de melhoria da atuação das nossas forças policiais que
ignorar as construções societárias originalmente construídas pelos cidadãos
angolanos sobre ela estará fadada ao agoiro. Não bastará, certamente, equipar e
armar as polícias com a ultima tecnologia. Disto poderá resultar mais prisões e
não menos crimes. Não precisamos de uma polícia “gulosa”, uma polícia que
prende muito (e todos?). Angola precisa é de uma polícia que evita o crime,
evita a alteração da ordem e inibe as infrações. Quanto mais prisões se
realizam mais dinheiro dos contribuintes é gasto para o funcionamento das
estruturas de apoio. O mesmo não se pode afirmar, com igual facilidade, sobre
as infrações de trânsito pois elas resultam em benefícios financeiros para o
estado[2].
Todas
as forças policiais ao redor do mundo adotaram uma postura diante das sus
comunidades e diariamente trabalham visando o alcance dos melhores resultados.
Desde Gendarmerie royale du Canada, passando pela Scoland Yard da
Inglaterra até ao FBI dos Estados Unidos, só para citar as melhores do mundo o
sucesso alcançado é medido pela diminuição de ocorrências nas suas áreas de
jurisdição e a quantidade de pessoas sacrificas (mortas) e recursos empregues
nas suas operações. Assim, uma polícia é de sucesso quando consegue reduzir o
número de ocorrências na sua área, quando resolve os casos sem necessidade
matar cidadãos ou apreende-los. Para isso é fundamental a colaboração da
comunidade.
Para
conseguir tal colaboração essas polícias servem-se de diversos expedientes,
entre ao quais se destacam os tecnológicos. Há sempre uma linha funcional para
as denúncias e a garantia de que os cidadãos serão tratados com dignidade
sempre que colaborarem com a polícia. Algo que é assegurado pelo elevado grau
de instrução tática e humanística.
Devido
a ausência de dados oficiais, só podemos especular, o nível de formação da
maioria dos agentes que circulam e atuam nas ruas do nosso país. Essa é de certo
uma debilidade a colmatar. Pois deverá ser a própria polícia a primeira a fazer
um entendimento mais articulado do que a população considera justo, para agir
com justiça. Ela só pode agir com justiça e não fazer justiça seja no acidente
de trânsito ou na briga do bar. Nisso é fundamental que se tenha assente a ideia
de sanção e de justiça restituitiva[3]. Mas por que raio o polícia terá de saber
de justiça restituitiva e se não ele quem julga os fatos? Embora não seja ele quem julga os fatos ele desempenha um
papel crucial por ser o primeiro elemento numa cadeia de atores que concorrem
para que se faça justiça. O desconhecimento dos princípios deste tipo de
justiça poderá fazer o agente a atuar contra a própria justiça que devia
servir. De forma simplificada, o conceito de justiça
restaurativa baseia-se na teoria dos três
R: i) Atuar para que o arguido assuma a sua Responsabilidade;
ii) Permitir uma melhor Reintegração do
arguido na Comunidade; iii) Estimular
a Reparação do dano
causado.
Um polícia que domine estes
princípios não atuará grosseiramente um cidadão que não tenha sido constituído
arguido, ou seja, estará ciente que até o cidadão ser constituído arguido ele é
apenas um cidadão como qualquer outro, merecedor de dignidade. Uma dignidade
que não perde nem na condição de arguido nem na condição de condenado. Os maus
tratos que recebemos nas esquadras e suas celas ou nas inexplicáveis (ou poucas
vezes explicadas?) operações stop não raramente nos deixam traumas que só nos
ajudam e recrudescer a imagem vilã que temos da polícia. Enquanto o contato com
a polícia significar uma experiencia quase sempre sofrível, por isso
traumatizante, a integração dos indivíduos após o cumprimento das suas penas e
coimas será difícil. A este respeito é, também escusado, chamar exemplos como
os do pai que é preso na frente dos filhos e toda vizinhança em hora imprópria
sem que se trate de um flagrante delito ou represente significativo risco à
sociedade. A restituição do dano é ela própria a realização da justiça. Mas não
é o único objetivo da justiça com o ato de julgar. Julgar é, sociologicamente
falando, mais do que dizer o que é certo ou errado, mostrar a quem errou que
está errado. Imputar uma sanção a um indivíduo incapaz de dela fazer um juízo
de valor redunda no fracasso do próprio ato de julgamento, se tivermos em linha
de conta que o julgamento visa acurar responsabilidades por meio da qual se
desestimula os indivíduos a tal prática e procede-se a restituição, quando
possível. Aqui reside a função pedagógica de uma sanção. Sancionar deve
necessariamente implicar ensinar. De contrário se converte num ato sádico de
vingança. Ressaltando que, é obrigação de todos que intervêm na efetivação do
ato de julgar[4]
garantir que o individuo não fique para o resto da usa vida associado a tal
episódio, sob pena de inviabilizar a sua integração à comunidade. Sobre estes
quesitos a nossa deverá continuar a trabalhar, para trabalhar melhor.
[1] Alberto Bento Virgílio na sua tese de mestrado aborda
com sucesso as questões de policiamento de proximidade em Angola, ordem e
segurança públicas e confiança que as comunidades têm na polícia
[2]
Sobre esta questão abordaremos em reflexões posteriores dada polémica envolve
não sou entre as populações em Angola, como também no âmbito das ciências
criminalistas.
[3]
A Justiça
restituitiva ou justiça Restaurativa é essencialmente uma abordagem
conceptual que procura encontrar soluções para as muitas questões relacionadas
com a prática de qualquer tipo de crime. Baseia-se num conjunto de princípios e
processos variados desenvolvidos mundialmente, mas cujo desenvolvimento se tem
centrado principalmente nas últimas décadas nos EUA, Canada, Nova Zelândia,
Austrália e Africa do Sul, países cuja raiz jurídica se baseia tipicamente no
Commom Law. O conceito de Justiça Restaurativa baseia-se numa variedade de
processos que procuram enfrentar e lidar com conflitos (crime) onde o
envolvimento procedimental da vítima é tão importante como do arguido. Este
conceito coloca a sua ênfase no dano causado á vitima assim como a própria
comunidade onde esta se encontra inserida. Procura estabelecer um
reconhecimento geral de que o crime é tanto uma violação das relações entre um
conjunto específico de pessoas; como uma violação contra todos – e logo contra
o Estado. Sempre que seja
considerado apropriado, a vitima e o arguido tem a hipótese de se confrontar
num ambiente controlado, dando desta forma a oportunidade a ambos de explicar as causas e as consequências
pessoais do crime. O objectivo central passa pela revalorização do papel da
desculpa e da tentativa real da reparação do dano causado.
[4]
Uso as expressões “ato de julgar” e “justiça” como sendo distintos conceitos.
Entendo que o ato de julgar nem sempre conduz a efetivação da justiça. Ou seja,
podem existir julgamentos sem justiça.
0 Deixe o seu comentário:
Enviar um comentário