quarta-feira, 20 de março de 2013

"Quando é que polícia trabalha(rá) bem?" - artigo de opinião de Martinho Bangula

Por: Martinho Bangula (mbkatumua@hotmail.com) - Quando prende muitos cidadãos ou quando poucos cidadãos cometem crimes? As respostas a estas questões podem variar, conforme o olhar que lançarmos sobre a polícia. Em Angola, infelizmente, alguns cidadãos nutrem um ódio coletivo pela nossa querida polícia - Escusado é aqui falar da sofrível relação entre os reguladores de trânsito, taxistas e camionistas.

Prender para investigar ou não investigar simplesmente são certamente nuances presentes nas representações sociais que fazemos da ação da nossa polícia. Uma polícia incapaz de agir com prontidão diante de situações comuns não obtém dos cidadãos senão uma vaga ideia de obstáculo à sua vida (a polícia em certa medida atrapalha).Este é um olhar.

Há, contudo, outro olhar que nos permite ver uma polícia aguerrida, sacrificada e quase mágica. Uma polícia que combate criminosos do século XXI socorrendo-se de técnicas e equipamentos do século XVIII. Esta mesma policia que serviu-nos na guerra civil de 1992 em Benguela e demais cidades de Angola e conduziu de modo exemplar o desarmamento da população em 2008. Não consigo deixar de ver assim, também, a nossa polícia.

Não é de todo difícil auferir o grau de sucesso das forças policiais em tarefas de rotina. As polícias de trânsito e de ordem pública com as quais mais interagimos dada a natureza da sua atividade, brindam-nos todos dias com exemplos de grosseira inoperância por essa Angola a dentro. Essa inoperância não é só por omissão (uma polícia que não faz ou pouco faz), mas sobretudo por obliteração da sua atividade (uma polícia que faz o não deve ou faz mal o que deve).

Apreender quantidades colossais de ukupapatas, taxistas, aplicar multas de modo indiscriminado ou privar os cidadãos da sua liberdade sem prévias provas não são indicadores de “boa atividade”, se eles não tiverem sido precedidos de admoestação ao cidadão ou da instrução de competente processo a nível cível ou criminal. Definitivamente, apreender não é a função principal da polícia da “boa atividade”, assim como não é apanágio dos verdadeiros tribunais se excederem nos prazos das prisões preventivas.

A atividade policial está ela, em si mesma, eivada de certas infelicidades. Ou seja, a se a polícia, por lado, deve ser amiga da comunidade, para nela buscar e encontrar a necessária legitimidade dos seus atos, por outro, o êxito da sua atividade poderá implicar a “remoção” coerciva de um membro ou bem dessa comunidade o que, gera sempre incompreensões por parte dos restantes comunidade ou, no mínimo, por parte daqueles que são mais diretamente tocados. Este carácter sempre volátil da relação das polícias com as comunidades exige de ambas um certo “jogo de cinturas”, onde geralmente os cidadãos são os que mais “rebolam”. 

Mesmo nas sociedades que conseguiram ao longo dos anos atingir um elevado nível de organização e funcionamento das suas forças policiais este fato não está excluído. Parece-nos um problema sempre imanente à natureza dessa relação e que independe da capacidade dos seus atores.

Não é por isso, que devemos nos escusar de refletir sobre a relação da polícia e a comunidade. Aliás, tem já havido debate e até mesmo estudos de reconhecida qualidade a este respeito [1] sobre a realidade angolana.

Em virtude de, presentemente, assistirmos à corrida a reorganização, capacitação e modernização do efetivo material e humano da polícia nacional no nosso país, urge repensarmos o seu papel no quadro dos valores socioculturais do povo angolano em articulação com as construções societárias de sanção, justiça e proteção.

Profecias à parte; qualquer plano de melhoria da atuação das nossas forças policiais que ignorar as construções societárias originalmente construídas pelos cidadãos angolanos sobre ela estará fadada ao agoiro. Não bastará, certamente, equipar e armar as polícias com a ultima tecnologia. Disto poderá resultar mais prisões e não menos crimes. Não precisamos de uma polícia “gulosa”, uma polícia que prende muito (e todos?). Angola precisa é de uma polícia que evita o crime, evita a alteração da ordem e inibe as infrações. Quanto mais prisões se realizam mais dinheiro dos contribuintes é gasto para o funcionamento das estruturas de apoio. O mesmo não se pode afirmar, com igual facilidade, sobre as infrações de trânsito pois elas resultam em benefícios financeiros para o estado[2].

Todas as forças policiais ao redor do mundo adotaram uma postura diante das sus comunidades e diariamente trabalham visando o alcance dos melhores resultados. Desde Gendarmerie royale du Canada, passando pela Scoland Yard da Inglaterra até ao FBI dos Estados Unidos, só para citar as melhores do mundo o sucesso alcançado é medido pela diminuição de ocorrências nas suas áreas de jurisdição e a quantidade de pessoas sacrificas (mortas) e recursos empregues nas suas operações. Assim, uma polícia é de sucesso quando consegue reduzir o número de ocorrências na sua área, quando resolve os casos sem necessidade matar cidadãos ou apreende-los. Para isso é fundamental a colaboração da comunidade.

Para conseguir tal colaboração essas polícias servem-se de diversos expedientes, entre ao quais se destacam os tecnológicos. Há sempre uma linha funcional para as denúncias e a garantia de que os cidadãos serão tratados com dignidade sempre que colaborarem com a polícia. Algo que é assegurado pelo elevado grau de instrução tática e humanística.

Devido a ausência de dados oficiais, só podemos especular, o nível de formação da maioria dos agentes que circulam e atuam nas ruas do nosso país. Essa é de certo uma debilidade a colmatar. Pois deverá ser a própria polícia a primeira a fazer um entendimento mais articulado do que a população considera justo, para agir com justiça. Ela só pode agir com justiça e não fazer justiça seja no acidente de trânsito ou na briga do bar. Nisso é fundamental que se tenha assente a ideia de sanção e de justiça restituitiva[3]. Mas por que raio o polícia terá de saber de justiça restituitiva e se não ele quem julga os fatos? Embora não seja ele quem julga os fatos ele desempenha um papel crucial por ser o primeiro elemento numa cadeia de atores que concorrem para que se faça justiça. O desconhecimento dos princípios deste tipo de justiça poderá fazer o agente a atuar contra a própria justiça que devia servir. De forma simplificada, o conceito de justiça restaurativa baseia-se na teoria dos três R:    i) Atuar para que o arguido assuma a sua Responsabilidade; ii)  Permitir uma melhor Reintegração do arguido na Comunidade; iii)  Estimular a Reparação do dano causado.

Um polícia que domine estes princípios não atuará grosseiramente um cidadão que não tenha sido constituído arguido, ou seja, estará ciente que até o cidadão ser constituído arguido ele é apenas um cidadão como qualquer outro, merecedor de dignidade. Uma dignidade que não perde nem na condição de arguido nem na condição de condenado. Os maus tratos que recebemos nas esquadras e suas celas ou nas inexplicáveis (ou poucas vezes explicadas?) operações stop não raramente nos deixam traumas que só nos ajudam e recrudescer a imagem vilã que temos da polícia. Enquanto o contato com a polícia significar uma experiencia quase sempre sofrível, por isso traumatizante, a integração dos indivíduos após o cumprimento das suas penas e coimas será difícil. A este respeito é, também escusado, chamar exemplos como os do pai que é preso na frente dos filhos e toda vizinhança em hora imprópria sem que se trate de um flagrante delito ou represente significativo risco à sociedade. A restituição do dano é ela própria a realização da justiça. Mas não é o único objetivo da justiça com o ato de julgar. Julgar é, sociologicamente falando, mais do que dizer o que é certo ou errado, mostrar a quem errou que está errado. Imputar uma sanção a um indivíduo incapaz de dela fazer um juízo de valor redunda no fracasso do próprio ato de julgamento, se tivermos em linha de conta que o julgamento visa acurar responsabilidades por meio da qual se desestimula os indivíduos a tal prática e procede-se a restituição, quando possível. Aqui reside a função pedagógica de uma sanção. Sancionar deve necessariamente implicar ensinar. De contrário se converte num ato sádico de vingança. Ressaltando que, é obrigação de todos que intervêm na efetivação do ato de julgar[4] garantir que o individuo não fique para o resto da usa vida associado a tal episódio, sob pena de inviabilizar a sua integração à comunidade. Sobre estes quesitos a nossa deverá continuar a trabalhar, para trabalhar melhor.


[1] Alberto Bento Virgílio na sua tese de mestrado aborda com sucesso as questões de policiamento de proximidade em Angola, ordem e segurança públicas e confiança que as comunidades têm na polícia
[2] Sobre esta questão abordaremos em reflexões posteriores dada polémica envolve não sou entre as populações em Angola, como também no âmbito das ciências criminalistas.
[3] A Justiça restituitiva ou justiça Restaurativa é essencialmente uma abordagem conceptual que procura encontrar soluções para as muitas questões relacionadas com a prática de qualquer tipo de crime. Baseia-se num conjunto de princípios e processos variados desenvolvidos mundialmente, mas cujo desenvolvimento se tem centrado principalmente nas últimas décadas nos EUA, Canada, Nova Zelândia, Austrália e Africa do Sul, países cuja raiz jurídica se baseia tipicamente no Commom Law. O conceito de Justiça Restaurativa baseia-se numa variedade de processos que procuram enfrentar e lidar com conflitos (crime) onde o envolvimento procedimental da vítima é tão importante como do arguido. Este conceito coloca a sua ênfase no dano causado á vitima assim como a própria comunidade onde esta se encontra inserida. Procura estabelecer um reconhecimento geral de que o crime é tanto uma violação das relações entre um conjunto específico de pessoas; como uma violação contra todos – e logo contra o Estado.  Sempre que seja considerado apropriado, a vitima e o arguido tem a hipótese de se confrontar num ambiente controlado, dando desta forma a oportunidade a ambos de explicar as causas e as consequências pessoais do crime. O objectivo central passa pela revalorização do papel da desculpa e da tentativa real da reparação do dano causado. 

[4] Uso as expressões “ato de julgar” e “justiça” como sendo distintos conceitos. Entendo que o ato de julgar nem sempre conduz a efetivação da justiça. Ou seja, podem existir julgamentos sem justiça. 
Share:

0 Deixe o seu comentário:

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas