Não
me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madamme Bovary. O primeiro,
coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se
pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal
sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa
inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores
cortesãos.
Ler
realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso,
inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de
outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável.
Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante
dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à
realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar
enriquecê-la com cabriolas da imaginação.
Sem
ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o
sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte
dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é
fazer o que dele esperam e nada mais?
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie
atalhos para caminhos que devem necessariamente ser longos. Ler pode gerar a
invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que
lhe é devido.
Além
disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a
paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de
cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em
movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há
estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede
de aceitar nossas realidades cruas.
Não,
não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, podem
levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do
homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem
noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras,
destruição, violência. Professores, não contem histórias, podem estimular um
curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o
trabalho duro.
Ler
pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus
direitos políticos, em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma
ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a
sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se
pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer
dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.
O
mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões
utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio,
projetos, manuais, etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da
civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem
magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E esse o
tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê,
não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do
que a leitura?
É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente
ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais
àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em
metrôs, ou no silêncio da alcova… Ler deve ser coisa rara, não para qualquer
um. Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos. Para
obedecer, não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem do submisso. Para
executar ordens, a palavra é inútil.
Alem
disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros
sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e
público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz
identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e
aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.
Guiomar
de Grammont é mineira de Ouro Preto, historiadora, filósofa e escritora. Já
publicou contos, antologias, livros sobre historiografia e o romance A casa dos
espelhos.
Fonte: Trecho do livro, PRADO, J. & CONDINI, P. (Orgs.). A formação
do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro: Argus, 1999. pp. 71-3.
http://www.livrosepessoas.com/2013/03/22/ler-devia-ser-proibido-3/
0 Deixe o seu comentário:
Enviar um comentário