sábado, 27 de outubro de 2018

A Voz do Olho: 06 | POSSO OU NÃO ESCREVER SOBRE O AMOR?


Já em posse do bruto que daria corpo ao meu livro de estreia, o editor deu-me a ler algumas obras literárias, gramáticas e antolo­gias para captar conceitos, forma e espírito de poesia. Intrigou-me um conselho que desaconselhava principiantes a escreverem sobre o amor, de tão explorado que o tema vem sendo por grandes escritores.

Sobre o amor já vivi, também eu, tudo o que me poderia surpre­ender. Já enganei, já fui enganado. Já conquistei, já fui venerado. Já enchi litros de lágrimas, não duvido que tenha causado o mesmo a alguém. Já levei corrida (a que mais me marcou foi a da cunhada de uma miúda de Benguela que conheci, quando aos dezasseis anos trabalhava como fotógrafo numa barraca da praça da Katombela; era bonita, voz grossa, trocamos alguma carícia periférica, até o dia em que me meti no autocarro para ir ter com ela no bairro Alda Lara. Foi correr de verdade e nunca mais olhar atrás, o nome dela é tudo quanto restou. Cheguei a desejar morte à minha algoza — sei que não devia, embora não ignore que amor e morte, efectuada ou prometida, não andam muito distantes uma da outra). Como é claro, também já fui herói. É esta última condição que conta, hoje, nesta crónica em particular, digo.

Certo dia, de bucho devidamente satisfeito, um meu amigo e eu cuidamos de esfregar as mãos com petróleo iluminante (querosene?) para abafar a inconveniência do perfume da lombula (ou lambuda, para aqui aportuguesar a boa sardinha) grelhada, difícil que estava, naquela noite, achar o pedaço de sabão mais próximo. Cumprindo a rotina, fizemo-nos à parada, ao longo da estrada Kalumba-Katom­bela, caprichando no vocabulário para cair na graça de novas rapa­rigas na sanzala ou, no mínimo, consolidar namoricos.

Caminhávamos aleatoriamente pela noite escura, que se fazia mais escura pela ausência, não já da energia eléctrica, mas sobre­tudo de meninas que deviam ter muito trabalho doméstico a seguir ao jantar. Não seria a primeira noite de desencontros, estávamos cientes, bons dias viriam, ou não tivesse a semana sete dias e noites.

Chamou a nossa atenção algo a que chamaríamos de discussão, se passasse de monólogo. «Vou-te sepultar… na sepultura», retinia um tipo que mal conhecíamos. Aproximámo-nos. A diferença de idade entre nós e o trio em certa medida equivalia a uma geração. «Eu vou-te sepultar… na sepultura. Eu sou baiano. Eu sou muito baiano», arrotava.

Mas será que os baianos (naturais da Baía Farta) sepultavam fora de sepulturas? Bem, teria de consultar livros de arqueologia e antropologia mais tarde, o que urgia mesmo era salvar o mano que conhecíamos. Este, na típica ambivalência, tentava uma recaída com a ex-namorada, não que ela não fosse cúmplice, só que, para o seu azar, o rival se antecipara na recolha de informações relevantes sobre si (nome e fenótipo).

A rapariga, impotente, tentava acalmar o namorado mais ou menos chifrudo, que seguia ameaçando, com as mãos ora no bol­so, ora na cintura, dando a entender que trazia armamento sob o casaco. Já o nosso amigo era a mais acabada ilustração de pânico. A sua motorizada andava confiscada pelo agressor. Mas por muito agressivo que o baiano quisesse ser, ele era estranho no bairro, ao qual estava ligado apenas pela namorada. A nossa presença jogava contra si. Foi então que libertou a motorizada. E lá o nosso conhecido saiu connosco da zona de conflito.

Por essa e por outras, posso ou não escrever sobre o amor?

Bairro da Santa Cruz, Lobito, 8 Maio 2013.

Gociante Patissa, Benguela. In «O Apito Que Não Se Ouviu», 2015. Pág. 75-76. União dos Escritores Angolanos. 1.ª Edição. Luanda, Angola. Colecção: «Sete Egos»
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