sábado, 13 de outubro de 2018

A Voz do Olho: 04 | O ZÉ DO 28, O INGLÊS E EU NO PORTO (*)


Aleija-me profundamente a mentira: a das mulheres, a dos mestres, a dos mecânicos, a dos políticos, a das crianças. Nunca fui, todavia, o primeiro a atirar pedras.

À chegada do interior, tive a felicidade de morar no morro da Quileva. Tem-se vista avantajada do coração da cidade. Cintura verde, a sul, as salinas, no centro, e o mar, a norte. Se desci o morro, foi somente atrás da máquina burocrática para questões escolares. Para lá dos jardins, uma vez na baixa, a cidade sumia, daí o desejo de logo regressar à prateleira. Por exemplo, disputávamos a titularidade de carros que víamos circularem na linha do horizonte.

Em cidades singulares, as portas todas costumam dar em uma só com alma, o porto. Às marés ou aos caudais, faz-se entrada e saída, ao mesmo tempo, o cais. E é este desfile aparentemente desconexo dos navios que adensa na história do meu Lobito o fio.

Com a greve dos professores, foram três meses de tédio, agora no bairro da Santa Cruz, zona com vista limitada, sem o televisor em casa, que por sua vez somava meses no conserto. Tudo levava a crer que o eletrotécnico não despacharia o trabalho sem a paga, posição quanto a nós injusta, porquanto o dinheiro que lhe faltava a ele faltava-nos a nós também. Estamos em 1995, e a presença, às centenas, de capacetes azúis da ONU e demais agências humanitárias ilustrava bem o quadro de penúria que o país atravessava, resultado do retorno à guerra civil entre as forças guerrilheiras da Unita e o exército governamental, com o fracasso da primeira experiência democrática, tendo como mote a não-aceitação pela oposição dos resultados das eleições de 1992.

Não me ocorrendo a posição do pai, decidimos entre irmãos tirar proveito da ONU. Coube-me a missão de juntar a coragem ao meu arrojado inglês e comercializar, tipo zunga, as estátuas de madeira lá de casa. Arrecadaríamos cinquenta e cinco dólares norte americanos, o equivalente a dois salários de professor. Em vão. O televisor já tinha sido extraviado.

O contacto com os capacetes azúis era fruto proibido em certos quartéis. Recordo quando o Eliseu viu o seu negócio confiscado, digamos que de modo ilícito, pela guarnição do Hotel Términus. Mais conversa, menos conversa, prometeu-se subornar o guarda angolano, penhorando o Bilhete de Identidade. Parvo do guarda, já que ficava sempre mais fácil tratar outra via do documento.

Lá conheci o Zé, mais novo e mais alto do que eu. Até em sua casa, no 28 (Zona Comercial), cheguei a beber água. Causava impressão ver-me, baixote, falar «fluentemente» com os estrangeiros, ganhando esporadicamente desde livros, cassetes, a produtos de higiene. Foi o Zé quem decidiu levar-me ao Porto do Lobito, onde esteve naquele dia um navio britânico da ONU. Atleta de basquetebol na escola da Casa do Pessoal, o Zé passava pelo portão sete como água pela garganta. Como entraria eu?

O Zé instruiu-me a dizer ao polícia que iria ter com o guindasteiro Frederico Carlos, meu «pai». O polícia fitou-me, e autorizou. Ainda melhor, disse para voltar a ter com ele, caso alguém me molestasse. Tinha resultado! Antes de degustarmos as iguarias do navio, observei ao longe o guindasteiro. De facto, tínhamos algumas semelhanças, no tom de pele ligeiramente clara e no semblante aparentemente mentalista, enfim.

Hoje, o Zé é um homem feito, fazendo carreira como professor de educação física em colégios. Um dia desses lembrar-lhe-ei aquela emocionante aventura, todavia reprovável.

Gociante Patissa. In «O Apito Que Não Se Ouviu», 2015. Pág. 60-61. União dos Escritores Angolanos. 1.ª Edição. Luanda, Angola. 2015 Colecção: «Sete Egos»
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