Aleija-me profundamente a mentira: a das mulheres, a
dos mestres, a dos mecânicos, a dos políticos, a das crianças. Nunca fui,
todavia, o primeiro a atirar pedras.
À chegada do interior, tive a felicidade de morar no morro
da Quileva. Tem-se vista avantajada do coração da cidade. Cintura verde, a sul,
as salinas, no centro, e o mar, a norte. Se desci o morro, foi somente atrás da
máquina burocrática para questões escolares. Para lá dos jardins, uma vez na
baixa, a cidade sumia, daí o desejo de logo regressar à prateleira. Por
exemplo, disputávamos a titularidade de carros que víamos circularem na linha
do horizonte.
Em cidades singulares, as portas todas costumam dar em
uma só com alma, o porto. Às marés ou aos caudais, faz-se entrada e saída, ao
mesmo tempo, o cais. E é este desfile aparentemente desconexo dos navios que
adensa na história do meu Lobito o fio.
Com a greve dos professores, foram três meses de
tédio, agora no bairro da Santa Cruz, zona com vista limitada, sem o televisor
em casa, que por sua vez somava meses no conserto. Tudo levava a crer que o
eletrotécnico não despacharia o trabalho sem a paga, posição quanto a nós
injusta, porquanto o dinheiro que lhe faltava a ele faltava-nos a nós também.
Estamos em 1995, e a presença, às centenas, de capacetes azúis da ONU e demais
agências humanitárias ilustrava bem o quadro de penúria que o país atravessava,
resultado do retorno à guerra civil entre as forças guerrilheiras da Unita e o
exército governamental, com o fracasso da primeira experiência democrática,
tendo como mote a não-aceitação pela oposição dos resultados das eleições de
1992.
Não me ocorrendo a posição do pai, decidimos entre
irmãos tirar proveito da ONU. Coube-me a missão de juntar a coragem ao meu
arrojado inglês e comercializar, tipo zunga, as estátuas de madeira lá de casa.
Arrecadaríamos cinquenta e cinco dólares norte americanos, o equivalente a dois
salários de professor. Em vão. O televisor já tinha sido extraviado.
O contacto com os capacetes azúis era fruto proibido
em certos quartéis. Recordo quando o Eliseu viu o seu negócio confiscado,
digamos que de modo ilícito, pela guarnição do Hotel Términus. Mais conversa,
menos conversa, prometeu-se subornar o guarda angolano, penhorando o Bilhete de
Identidade. Parvo do guarda, já que ficava sempre mais fácil tratar outra via
do documento.
Lá conheci o Zé, mais novo e mais alto do que eu. Até
em sua casa, no 28 (Zona Comercial), cheguei a beber água. Causava impressão
ver-me, baixote, falar «fluentemente» com os estrangeiros, ganhando
esporadicamente desde livros, cassetes, a produtos de higiene. Foi o Zé quem
decidiu levar-me ao Porto do Lobito, onde esteve naquele dia um navio britânico
da ONU. Atleta de basquetebol na escola da Casa do Pessoal, o Zé passava pelo
portão sete como água pela garganta. Como entraria eu?
O Zé instruiu-me a dizer ao polícia que iria ter com o
guindasteiro Frederico Carlos, meu «pai». O polícia fitou-me, e autorizou.
Ainda melhor, disse para voltar a ter com ele, caso alguém me molestasse. Tinha
resultado! Antes de degustarmos as iguarias do navio, observei ao longe o
guindasteiro. De facto, tínhamos algumas semelhanças, no tom de pele
ligeiramente clara e no semblante aparentemente mentalista, enfim.
Hoje, o Zé é um homem feito, fazendo carreira como
professor de educação física em colégios. Um dia desses lembrar-lhe-ei aquela
emocionante aventura, todavia reprovável.
Gociante Patissa. In «O Apito Que Não Se
Ouviu», 2015. Pág. 60-61. União dos Escritores Angolanos. 1.ª Edição. Luanda,
Angola. 2015 Colecção: «Sete Egos»
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