Está confirmada a presença de Angola na 8.ª edição do Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, a ter lugar na cidade da Praia, Cabo-Verde, de 19 a 21 de Abril. O poeta David Capelenguela é quem representa a União dos Escritores Angolanos (UEA) no certame da iniciativa da UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa). O tema é «A Cidade e a Literatura: conexões entre Cidadania, Criatividade e Juventude». O incontornável Jacques Arlindo dos Santos é outra pena angolana de peso, o membro da UEA que foi presidente e fundou a Associação Recreativa e Cultural «Chá de Caxinde».
David Capelenguela (foto do autor)
David Capelenguela (foto do autor) |
Na entrevista concedida ao Blog Angodebates
por questionário, Capelenguela foi confrontado com o facto de, nos últimos anos,
diversos intelectuais terem posicionamento céptico quanto ao real impacto de
instituições arreigadas ao discutível rótulo da lusofonia, tais como a UCCLA e
a CPLP. Questionado se haverá algum ganho directo para a literatura angolana, o
autor de «Ego do Fogo» optou pelo copo
meio-cheio.
O escritor tem uma agenda recheada. De Cabo-Verde, voa para Portugal onde deverá participar de 23 a 26 no Festival de poesia de Foz Côa, no que será a sua segunda presença.
Actual
secretário para as Finanças da UEA, David Capelenguela nasceu na província da Huíla
em 1969. Licenciado em Direito e mestrando em Ciências Jurídico-Económicas e
Desenvolvimento pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, é jornalista
e perito de desenvolvimento comunitário ao serviço do Fundo de Apoio Social (FAS).
Um passeio
pelo acervo de Capenguela, nomeadamente «Vozes Ambíguas», antologia «Amor no
Meio do Teu Mar» (organizada por António Panguila), «Verso Vegetal» (prefaciado
pelo renomado professor Francisco Soares), enche os olhos pela plasticidade
estética. Mas é ainda mais no campo da temática que predomina a marca do artista
que trabalha com o substrato rural e etnográfico do sul de Angola. E sendo a
literatura um veículo cosmopolita, estão lá com a devida pertinência poemas de
temas mais universais.
Em «Vozes Ambíguas»,
nota-se um pendor hermético que por vezes vai além do proverbial, provocando no
leitor uma espécie de sede de dominar o contexto. Mas, claro está, é algo
que também não deixa de responder ao tema e fio condutor da obra, que são vozes
ambíguas. Por outro lado, ao contrário da tendência moderna em Portugal e
Brasil, fica-se com a sensação que o hermetismo (às vezes levado ao extremo) é já uma
característica da nossa poesia, muito presente em JL Mendonça, no próprio
Maimona, até mesmo em João Tala, talvez como forma de rotura relativamente à
poesia engajada e dialogante de Neto, Viriato, e outros. Já em «Verso Vegetal»,
há poemas que têem assim aquele desfecho instigador, como quem partilha, à
saída, a sabedoria de um provérbio.
Blog Angola, Debates & Ideias (Angodebates): Vai
sob indicação da União dos Ecritoes Angolanos (UEA) ou foi um convite à parte?
David Capelenguela (DC): Sim vou representar
Angola. Vou em nome da UEA.
Angodebates: Que expectativas tem em relação ao evento
e o que representa para si este intercâmbio?
DC: A minha expectativa é de poder perceber
como tem sido a produção literária de outros países, e neste caso,
particularmente a de Cabo Verde.
Angodebates: É dos poetas que mais trabalha na
vertente antropológica do sul de Angola, nomeadamente a representação da
idiossincrasia dos Nyaneka e Kwanyama, a par dos ovimbundu ao qual pertence.
Haverá alguma meta, um objectivo subjacente neste quase solitário apego à
temática telúrica?
DC: Objectivos há sempre, me parece,
para nós que estamos ao exercício da escrita. Quem escreve espera sempre
ser lido. O que tenho estado a tentar representar nesta vertente/estilo de
produção literária tem sido uma espécie de rotura com o modo comum de
apresentação estético-literário.
Julgo [que] tenho
sido, já há algum tempo, um daqueles autores cuja matriz textual procura
evidenciar rotura com os formalismos, onde o recurso a interpretação de uma
dada canção, provérbio, adágio, adivinha ou outra manifestação da tradição
oral, é motivo de inovação, tanto ao nível formal da elaboração semântica como
da urdidura estético-formal, da reinvenção verbal e da elaboração figurativa da
linguagem, resgatando e descodificando símbolos, signos, com fito único de
enformar a angolanidade literária.
Só assim se pode
compreender que o apego à temática telúrica é um exercício de realce ao
encontro da identidade assente na combinação de pátria e terra. Esse exercício,
quando realizado com subtileza e maestria para o texto, realiza a solenidade da
poesia e os cultores que a alcançam podem orgulhar-se de lhe terem
rendido à excelência.
Angodebates: Tem havido da parte de diversos
intelectuais um posicionamento crítico e céptico quanto ao real impacto de
instituições como a UCCLA e a CPLP. Da sua perspectiva, que impacto ou
vantagens objectivas trazem esses encontros da UCCLA ou as bienais de jovens
criadores da CPLP? Colocado de outra forma, há algum ganho directo para a
literatura angolana?
DC: Penso que num intercâmbio como o
que vai acontecer, há sempre alguma coisa de boa que se possa colher e
partilhar.
Angodebates: Lançou no passado dia 13 de Março em
Luanda o livro de poesia Ego do Fogo, o qual ainda não tivemos a oportunidade
de ler. Por isso gostaríamos de pedir que nos fale dele
DC: «Ego do Fogo» é uma obra de homenagem a
todas as mulheres. Mulher mãe, esposa, irmã, filha, enfim mulher companheira.
Assiste-se nos nossos dias [a] uma inversão de olhares, onde para muitos casos a mulher
não passa de um produto. Produto descartável ou, se quisermos, sem valor. O
escritor deve-se situar no nível médio-alto, pois instado ao exercício do seu
ofício, é formador de opinião. Para tal, devemos pautar uma conduta de intelectualidade,
saber ser e estar, pois os olhos da sociedade estão sempre sobre nós.
Por esta razão em «Ego
do Fogo» procuro enaltecer e elevar a imagem e o preponderante da mulher na
sociedade, procurando demonstrar e elevar as coisas positivas e repudiando as
negativas que são praticadas pelas mulheres, de forma poética, claro.
Angodebates: De resto como vai a sua lavra literária?
DC: Tenho trabalhado, como sempre. Estou num
campo de actuação, onde o meu exercício de assistente de desenvolvimento local
(trabalho com as comunidades rurais) no âmbito do meu exercício profissional no
FAS-Fundo de Apoio Social e o exercício do jornalismo investigativo (queira
antes no Jornal de Angola, Angop, na rádio Namibe, Huila, Cunene, bem como
actualmente na Rádio Lunda Sul) têm-me permitido ter um olhar diferenciado
sobre a nossa identidade cultural.
É isso que me anima,
revigora e retempera o meu compromisso o trabalho literário sobre o
assentamento oral numa tentativa não apenas de resgatar a riqueza do patrimônio
etnográfico e os valores tradicionais do depósito oral, mas também de servir de
fiel repórter e uma espécie de «fio condutor» para aproximar o campo à cidade,
ou vice-versa, sem que nenhuma absorva a genuinidade da outra.
Angodebates: De economia e estabilidade cambial,
estamos numa fase transversalmente complexa, quanto mais para sonhadores. É
sabido por exemplo que a UEA deixou de receber o patrocínio do seu principal
mecenas, a Sonangol, que suportava a edição de livros e o Prémio Revelação.
Enquanto isso, parece surgir a cada dia uma editora emergente, muitas arrojadas
e tuteladas por jovens ontem potenciais poetas, que apelam ao
auto-financiamento por parte dos próprios autores das obras a editar. Que
leitura faz deste quadro?
DC: Assistimos hoje [a] uma ambivalência. Ou
seja, como posso ser autor agora também daqui há mais algumas semanas, com um
empurrão do padrinho X ou Y, transformo-me num editor. Banalizamos tudo, pois
para alcançar objetivos, ainda que obscuros, tudo vale. De facto a União dos
Escritores Angolanos não tem conhecido bons momentos, sobretudo quanto à sua
principal missão que é de editar obras de seus membros. O país assiste a uma
recessão econômica que arrasta todo o resto.
Mas é preciso que a
actual geração procure compreender os fenómenos e lidar com eles. Temos uma
responsabilidade no processo e se quisermos que o barco não afunde de todo,
precisamos [de] olhar mais com olhos ver. Precisamos [de] desmistificar os pseudo-escritores
do top, e com agravante de que muitos deles dão ousadia para gerações mais
novas pensarem que já são e podem tudo. Como diz um ditado da etnia Herero (do
Sul de Angola) «ondyala itia, kavake-kavake, okomunyandi katyeta ovinkhodo», ou
seja, «a fome ouve-se a dizer, rouba-rouba, as aderências do pau de mexer o
pirão». Pois é, precisamos [de] corrigir o tal de que «onde há fome, safa-se
quem poder».
www.angodebates.blogspot.com | Benguela, 17 Abril 2018 | Gociante Patissa
www.angodebates.blogspot.com | Benguela, 17 Abril 2018 | Gociante Patissa
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Bom dia senhores, gostaria de uma ajuda pois necessito do contato do ilustre escritor David Capelenguela, o qual vocês publicaram uma reportagem. Sou professor no Centro Universitário ENIAC, Brasil, e gostaríamos de convidá-lo para participar do evento.
https://www.even3.com.br/seminarioetnicoracial/
Muito grato.
Prezado Sr. Humberto,
Agradecemos a sua visita e estamos a encetar contactos com o escritor David Capelenguela para satisfazer o pedido. Entraremos em contacto em breve.
Um abraço
Gociante Patissa
Voltando à conversa, caro Humberto, agradecíamos que nos facultasse o seu e-mail para dar seguimento ao assunto. obrigado
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