Diz-se que a terra é de quem produz, ou constrói. Diz-se que ao cabo de dois anos sem acção, legitima-se a ganhar outro ocupante. Se li a lei? A resposta é não. Já sei que, na febre dos terrenos, não se tem em presença a lei como tal. Por exemplo, alguém estava a assenhorar-se aos poucos de alguns metros de meu tio num subúrbio de Benguela. O mote é o de sempre, presumo: onde anda o (alegado) dono, que nada fez?
Num conto que escrevi há anos, dizia que de um político, como de um missionário, a família só tinha controlo sobre a data e lugar de nascimento; o resto de suas vidas eram os caminhos a decidir. Hoje, acrescento mais um nesta lista, o meu tio que é polícia.
Chamo «tio» só já porque estou a pensar em português. No sentir e falar como a tradição manda, o título é pai mesmo, como qualquer outro irmão ou primo do nosso progenitor. Esse tio responde no serviço pelo nome de registo, que não é para aqui chamado. Na família, é pai Njamba (elefante, em Umbundu, nome dado ao primeiro que nasce entre gémeos). Na minha cabeça, honestamente falando, devia chamar-se distância. É na verdade aquilo que mais imediatamente se associa à sua existência.
Pouco depois de 1992, o tio estava a adaptar-se ao peso dos passadores e, sobretudo, ao regresso à casa, vindo do curso em Espanha. Quer dizer, ele até que começava bem, encaixava a vida social nos eixos, para logo ser transferido. Luanda com ele!
Casa própria, que não chegou a ter cá, tinha-a em Luanda. Fui lá almoçar em 2003. Para mim que estive hospedado junto ao Largo da Independência, Porto Pesqueiro parecia distante, mas o bairro lá tinha suas vantagens. Nunca se está longe quando se é vizinho do intenso mercado Roque Santeiro! O tio chegaria a investir numa pequena farmácia. E lá a vivência: durante a semana, o trabalho e a escola; no fim-de-semana, a igreja. Carrito pessoal para circular, até chegar com a promoção a transferência. Huila com ele!
Maio de 2009. Estava eu de volta ao Lubango. Ia lançar o meu poemário de estreia, “Consulado do Vazio”. A própria viagem conheceu solavancos, mas teve de acontecer, ou não tivesse já consumido quinze dos trinta dias de férias. Hospedei-me em casa do segundo comandante da Polícia de Intervenção Rápida. Sim, o tio tinha já plantado casa própria, num bairro próximo do bom respirar, entretanto longe das decisões.
E acabei alterando a rotina: às manhãs, um agente motorista levava o chefe ao serviço, ao som de hinos cristãos. A seguir, calculando já ter ocorrido o mata-bicho, vinha-me pegar para o centro da cidade. No leitor do carro, ainda os louvores. Depois, jantar, telejornal e desporto. Não raras vezes, o tio adormecia no cadeirão da sala. Lia-se-lhe no rosto o cansaço dos homens da ordem, por ainda andarem à solta “Mil Homens”, um grupo de criminosos que operavam entre o Cristo Rei e a Nossa Senhora do Monte.
Prometi voltar com outro livro, mas faltou tempo para o fazer em 2010. E a projectar o ano que vem, soube que o tio foi posto, de novo, a caminho. Kuando Kubango com ele!
Os caminhos do meu tio? São os que a pátria quiser, a missão. Mas tem que manter aquele terreno de Benguela intacto, nem que seja pelo simbolismo de suas secundinas.
Gociante Patissa
(*) Presente no livro "O Apito Que Não Se Ouviu", originalmente publicada pela "Revista Tranquilidade" do Comando Geral da Polícia Nacional, pág. 81, Out-Dez 2012)
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