«Sulunla»
é título de um tema do cancioneiro do grupo etnolinguístico ovimbundu, que se
pode dizer que ganhou mais visibilidade com a roupagem no estilo sungura dada
por Bessa Teixeira, natural do Huambo. Não deixa de ser bela a versão mais
branda do benguelense Fedy (autor de «Kalupeteka»), mas é em Bessa que se
evidencia, no ritmo dançante e no espírito, uma maior proximidade à essência.
Com Bessa Teixeira, o tema foi tão-somente
a joia da primeira edição do álbum (colecção nascida na pirataria) «Sucessos do
Huambo», em 2003. Naquele mesmo ano, foi o segundo mais votado do Top dos Mais Queridos,
concurso anual da Rádio Nacional de Angola, edição ganha por Patrícia Faria, a ex-integrante
do grupo «As Gingas», conhecida por alguns êxitos do seu disco de estreia,
nomeadamente, «Pacheco» e «Caroço Quente».
«Sulunla», daqueles temas bem metafísicos,
chegou a ser receita obrigatória em quase tudo o que fosse farra por esta
Angola, não importando o desconhecimento da letra – e é aqui que reside o
motivo destas linhas. Há uma conjugação bem elaborada entre a voz (projectada
um pouco acima do habitual) e o ritmo quente – aqui aliás a vantagem. É um trecho
relativamente curto, talvez seja por isso que «sulunla» surge sempre encaixado
em rapsódia. Assim o fez Bessa Teixiera, assim o fez Fedy.
Eis o extracto e respectiva tradução livre:
«Ukãi wasoma ka la wala onanga/ Etali
wayiwala/ Ukãi wasoma ka la wala onanga/ Etali wayiwala (…) Sulunla, osõi ku kwete
la nãwã/ Ndilisunlunla?/ Sulunla, osõi ku kwete la nãwã!» (A mulher do
Soba nunca foi de usar panos/ E hoje está a usar/ A mulher do Soba nunca foi de
usar panos/ E hoje está a usar/ Devo despir?/ Tira lá isso, que devias ter
vergonha perante os cunhados!/ Devo despir?/ Tira lá isso, que devias ter
vergonha perante os cunhados!)
Em se tratando de um tema satírico sobre a
figura do «osoma» ou «soma» (rei), que teria dado origem à corruptela «Soba»,
torna-se relevante levantar alguns aspectos de ordem antropológica e
sociológica, para uma melhor compreensão do papel das canções interventivas.
Seria uma canção nascida «pesenje» (na
pedra), «poloñoma» (nas batucadas), ou no «ocipata» (o quarto do velório)? Entre os ovimbundu, pelo menos
falando dos de Benguela para não perdemos o foco, existem estes três cenários
para punição comunitária de condutas e defeitos por via da canção, não havendo
por vezes, digamos assim, a noção ocidental de vida privada.
Assim, temos: (a) «na pedra», onde as mulheres passam o dia transformando bagos de
milho em fuba com ajuda de «upi»,
triturador de madeira acotovelado, que marca o compasso ao coral improvisado e
quase perfeito; (b) ao contrário da pedra, que é marcadamente uma arena
feminina, no batuque («oñoma», em Umbundu) é inquestionável a superioridade masculina em torno da
figura mítica «ocinganji» (também
chamada de palhaço), para quem se toca o melhor possível do ritmo dos tambores,
não havendo cuidados quanto ao uso da linguagem. Um outro cenário é (c) no «ocipata», o quarto em que estiver
assentado o cadáver antes do funeral, o qual depois se transforma em palco de
machos e umas poucas mulheres, até o varrer de cinzas. Nesse ritual, também não
há temperos na linguagem, daí o acesso restrito.
Considerando que a educação tradicional
desencoraja a mulher de verbalizar abertamente a sexualidade e/ou afronta às
autoridades, e ainda porque não há como planificar as actuações no «ocipata», uma vez dependerem da
ocorrência de mortes, tomamos como válida a tese do velho PATISSA, Manuel (1916-
2008), segundo a qual «sulunla» – cujo significado é «despe-te» – encaixa-se no
repertório do «ocinganji». No
entender da nossa fonte, a origem da canção reside num repúdio à corrupção das
autoridades tradicionais africanas, aquando da invasão do regime colonialista
português.
É em Arjago que encontramos evidência
ainda mais precisa:
“A partir da década de 40 assistimos a institucionalização de regedorias
por todo o país com uniformes brancos e bandeiras erguidas nas suas
residências. Para tal era preciso pactuar com o regime colonial. Perante a
situação, os Sobas dividiram-se: uns a favor, outros contra o colonialismo,
dependentemente das capacidades que tinham de resistir ou de sobreviver. Os
Regedores reconhecidos pelo regime colonial passam a ordenado de 1.500$00, o
suficiente para comprar 3 cabeças de gado por mês e vestir todas as esposas”
(Arjago 2002, p.60).
Concluindo, diríamos que não obstante a
euforia que o tema hoje transmite, «Sulunla» nasceu da mágoa social e é
indicador da perda de legitimidade que grassou entre as autoridades africanas. Naquele
contexto, a ostentação de vestes ocidentais pela mulher do Soba, a par de
desvio de identidade, foi considerada um acto de corrupção material.
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