Perdido e
Veremos lamentavam-se, ignorando que os funcionários públicos coleccionavam
meses de salários em atraso. Os camponeses de subsistência arriscavam o pouco
tutano, mas lá vinham os ladrões, quantas vezes mais robustos, colhendo com pás
o que um dia se cultivou com enxadas. A fome nunca foi boa professora de ética
nem de estética.
Veremos e
Perdido recorriam à combinação dos instintos da criatividade gastronómica e
nutricionismo. Aos domingos de tarde, quando havia pouco movimento nas lavras,
carregavam na pasta diplomática uma frigideira e palitos de fósforos.
Aleatoriamente escolhiam uma lavra, onde faziam pipoca de sementes de girassol
ou de bagos de quiabo, estes últimos rijos como os próprios dentes.
(…)
Depois surgiram
as cozinhas humanitárias do PAM, que chegaram a ser o céu de muitas famílias. O
problema é que as filas eram muito longas, e mutilado fica cansado de tanto
aguardar com uma só perna. Perdido tinha que partilhar o pouco que recebia, sem
esquecer que, pela ordem alfabética, até chamarem os da letra P, a papa chegava
já fria.
(…)
Como se isso
fosse pouco, havia esporadicamente cadáveres à beira da estrada, aguardando
pela intervenção dos serviços comunitários e o tractor de recolha. À primeira vista,
havia mais vida em cadáver do que no homem da recolha.
Certo dia,
António Veremos e Grito Perdido decidiram forçar um encontro com o Delegado
Provincial da Secretaria de Estado para os Antigos Combatentes e Veteranos de
Guerra.
(…)
Postos lá, e
após várias horas pressionando a secretária em como não deixariam para outra
altura, o Delegado recebeu-os de pé, a despachar, no corredor. O anfitrião era
kambuta, de uma barriga que teimava em esticar a balalaica, vinco de gume nas
calças, sapatos quadrados bem reluzentes, risco no penteado, pente no bolso da
camisa, enfim. E saltava à vista o brilho oleoso no rosto do mwata, indicador
de que a vida lhe corria bem. O Delegado pediu mais paciência, havia coisas
mais urgentes do que a preocupação de dois indivíduos, pois atendia os nove municípios
da província. Perdido e Veremos exibiram passaportes de disponibilidade,
deixando claro que se tratava de ex-combatentes.
— Meus
camaradas, tropa nós todos fomos! Já disse para ter paciência, o processo vai
correr os trâmites administrativos normais, o tempo que levar.
(…)
— Mas, senhor
Delegado, uma vez que estamos aqui, não podíamos falar já do assunto? — Perdido
contestou.
— Delegado, nós
viemos de comboio do Lobito, tem que pensar nisso… — António Veremos
acrescentou.
— Alto aí! Tu
não me mandas, eu sou superior hierárquico! Aliás, vê-se bem que nunca foste
tropa mazé, senão batias a pala antes de me dirigires a palavra. Não entendes
de disciplina militar e me apareces aqui com passe de desmobilizado de
gabinete?
Veremos olhava o
Delegado e via as infernais troças de Zé do Norte. E ali, — tomas! tomas!
tomas! tomas! — quatro valentes muletadas da cabeça. Quando a guarnição entrou,
já o chefe estava desmaiado, a sangrar. O agressor era levado à cadeia.
Gociante
Patissa, in «Não Tem Pernas o Tempo», União dos Escritores Angolanos.
Luanda, 2013
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