Quando em meados da década de 1990
do século 21 testemunhei a grande festa de efiko (ritual de iniciação feminina)
entre os Vakwandu, grupo cultural pré-Bantu predominante no chamado território
dos Vandombe, fiquei mais ou menos decepcionado. Estava de visita à comuna da
Kalahanga, tinha eu pouco menos de 15 anos, e o meu pai, outro militante
profundo pela tradição oral, cuidou de nos aproximar à manifestação cultural
daquele povo. Como filhos do chefe (o velho era o administrador comunal),
foi-nos granjeado um lugar privilegiado. A minha decepção nada tinha que ver
com o ritual em si, ou com eventual diabolização infundada de que este tem sido
vítima ao longo dos tempos, mas tão-somente pela forma como anciãos procuravam,
digo mesmo compulsivamente, roubar um pedaço de carne ao lume e ir chupando o
tutano, tão agarrados ao osso, sujeitando-se a pauladas do guardião da copa. Na
minha concepção, como julgo ser na da maioria de outros Ovimbundu, o osso é a
parte menos valiosa do animal. Temos um provérbio segundo o qual “u olya omuma
ka litami losonde” (quem come o fígado não se suja com sangue). Subentende-se
existir no fígado o maior prestígio, tanto assim é que, quando se prepara uma
refeição para visitas ou pessoas relevantes, o fígado é das partes que não
devem faltar. Outro provérbio diz que “u ka li po ombelela yaye akepa” (ao
ausente, há o risco de sobrarem apenas ossos para conduto, mais concretamente o
que seria acompanhante para o pirão de milho ou de farinha de mandioca, que é
invariavelmente a base das principais refeições no meio rural). Bem, é
certo que não seria pelo valor antropológico do osso que o estudante de origem
Ovimbundu andaria aos pontapés com o conteúdo da anatomia, que atribui ao
esqueleto o mérito do equilíbrio do corpo humano. Para terminar, partilho uma das várias lições indirectas que retenho da minha mãe, nesta máxima: “cimwe,
nda tuyola, tuyolela ño apa kuti ovayo akepa” (às vezes, se é que nos rimos, só o conseguimos porque os dentes não passam de ossos). E aqui vai um poema que vem no meu livro
GUARDANAPO DE PAPEL, pág. 15. NósSomos. Lisboa, Portugal, 2014:
REGISTO MAGNÉTICO DA MAMA
Calha às vezes filho
que o arco-íris pinta cantos
farpados
no centro da mão do tímpano
Também calha filho
que o arco-íris traz cócegas à
pétala
O músculo então cede
com a leveza da água
afinal
dentes são só ossos.
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