Há três noitadas
que não se ouvia um único tiro. O lado de lá do estreito curso de água alojava
os inimigos, agora tão extenuados como ele. Chovera muito neste intervalo de
tréguas. O rio saltara do seu leito e tomara de assalto os capinzais. A
pradaria sentia saudades do gado que se esfumara sem dizer adeus. O ar
empestava. A pastagem dos bovinos fora invadida por centenas de corpos
inchados, de amigos e inimigos. Havia de tudo um pouco naquele matadouro
humanal. Cabeças sem corpo, corpos sem pernas, pernas com botas, botas sem
atacadores e atacadores sem donos, expondo-se gratuitamente no que fora teatro
das operações militares.
O declive do
relevo fazia a água escorrer ladeira abaixo. O líquido envolvia os corpos
saponificados, oleava-se e arrastava os vermes pràs trincheiras, feitas
cloacas, onde os combatentes se escudavam dos franco-atiradores. O vento
encarregava-se de repartir um cheirinho nauseabundo, próprio da carne em
decomposição, que mareava até aos mais cacimbados guerreiros. Aquela migalha de
mundo chamara a si o inferno.
Bem no chão da
trincheira, de cócoras com a arma repousando ao lado, olhava taciturno pròs
furos das suas empapadas botas de lona. Estava cismado, obstinado, impaciente
também.
De vez em quando
assomava a crista para ver se o prostrado ainda lá estava. Este gajo não acaba
de desinchar — dizia para si mesmo. Exatamente. Queria. Intimamente, desejava
que o seu camarada que jazia cinco metros à frente do fosso, na direção do
inimigo, desinchasse o mais rápido possível. É que o falecido calçava um par de
botas de cabedal, novas, daquelas de duas fivelinhas ao lado. E ele se
dispusera, estava irreversivelmente decidido a rastejar até ao corpo para lhe
retirar as botas. Pegar nas novas e jogar fora as suas rotas botas de lona. Mas
tinha de esperar. Era preciso que o corpo esvaziasse para facilitar a operação.
Tinha de aguardar mais uns dias. Tinha, sobretudo, de dilatar a chegada da sua
própria morte. Não podia, não devia morrer no próximo combate. Tinha mesmo de
rezar para não haver combate até que ele pudesse estrear o couro daquelas botas
novas.
Continuava a
chover. O céu borrifava rudemente os homens vivos e mortos e a terra, que
testemunhava a sua fúria. Os abutres refugiaram-se nas ramalhoças esperando o
sol, para à réu descerem em picada recolherem o repasto que os homens lhes
entregavam de bandeja. Tamanha serventia. Os homens tornaram-se copeiros dos
vulturídeos a quem presenteavam em lúgubre bacanal os corpos dos seus próprios
irmãos.
O crepúsculo
irrompia subitamente como de costume. Aproximava-se o momento solene em que a
sua paciência seria premiada com umas botas novas. Qual cometa saído da terra,
uma bengala profana com a sua luz o firmamento. O olhar ansioso do soldado
poisou sobre o inusitado clarão e se fechou de vez com a explosão do obus que
mergulhara na sua própria trincheira.
As botas de
cabedal lá estavam, num corpo agora menos tumefacto à mercê de quem as pudesse
salvar, qual troféu de guerra.
In «Balada
dos Homens que Sonham», pág. 149-150. Clube do Autor & União dos Escritores
Angolanos, 2012. - Imagem com
assinatura de autor não legível
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