segunda-feira, 2 de março de 2009

Crónica: O QUE UM SONHO TEM DE VERDADE

No momento em que inicio estas linhas, às escondidas porque o horário pertence ao patrão, estou ainda sob efeito do sonho, ou «choque» para ser mais preciso.

Levantei-me, assustado, a meio da noite. Um pesadelo? Ainda não sei se o era, sei é que andava confuso demais no momento em que me sacudi dele. Você talvez fosse direito à geleira, que até fica a metro e meio da cama, afastando “os maus espíritos” com um copo de água gelada. Porém não tenho hábitos de consumir após a hora de dormir. Nem tempo restava para me decidir se voltaria para a cama ou se passaria o resto da noite acordado. «Duas e quarenta de uma promissora quinta-feira», dizia-me, indiferente, o relógio. Tudo a dormir lá fora, incluindo os guardas (que bem o sei), excepto um ou outro carro vadio.

Era bom que os sonhos reflectissem apenas o espírito do dia, não? Assim, do tipo, para um dia de emoções agradáveis, sonhos maravilhosos. Que tal? Acende a indagação, movida pelo rápido recurso à memória do dia. Ou seja, o filme da viagem ao Caimbambo, recheada pela descoberta de suas picadas e paisagens, que têm um lençol vegetal de inevitável êxtase nesta época chuvosa. Mas nem isso sequer conseguiu suplantar o «estado de choque» que me havia entranhado.

Ora pois, voltando à indagação de há pouco, não seria mais justo que os dias bons trouxessem apenas sonhos equivalentes? Mas, vendo o outro lado da moeda nessa lógica, conseguiríamos sobreviver aos sonhos daqueles dias que desejaríamos que simplesmente não existissem no nosso calendário?

O tempo passava, com lentidão irritante. No quarto, apenas eu e a solidão. Logo percebo, dando-me por vencido, que a crítica ao critério dos sonhos era projecto furado.

No cenário criado pelo meu «injusto» sonho, eu acabava de ouvir que era seropositivo, que tinha o famoso VIH, vírus da SIDA. Logo eu, que há cerca de nove anos abracei a causa da prevenção, participando inclusive na concepção/gestão de diversos projectos comunitários de cidadania e saúde preventiva!… Justamente eu, que me “esqueci” do que é sexo sem camisinha, ao ponto de certo dia me chamarem de “espécie rara em vias de extinção”?! Seropositivo, eu? Não! Eu, dono de duas máquinas (para barba e cabelo) de uso exclusivo, que nunca apanhei transfusão de sangue, enquanto que soro só apanhei uma vez?

Já liberto da “anestesia”, dou conta do quanto determinados sonhos têm o inconveniente efeito de “teste surpresa”, sem dar tempo às vezes para elaborar uma saída, com base na retórica ou na lei do plano B. «Olha, você tem o vírus da SIDA!». Estaria eu preparado para ouvir tal notícia?

Sempre pensei que sim. Os anos de activismo na luta contra Infecções de Transmissão Sexual dão-me o direito de pensar que tenho um background consistente. Se nunca me abalei quando alguém revelasse a condição de pessoa vivendo com o VIH, só podia ser devido à transposição da barreira da estigmatização e preconceito. Na minha condição de jornalista (24 horas por dia), acompanho o que os outros (rádio, jornal, TV) fazem – com a devida empatia perante o drama de pessoas geralmente rejeitadas no seu meio. Não sendo os meus próximos imunes, há bem poucos anos perdi uma prima, que faleceu em consequência da SIDA. Será que ter sensibilidade perante um problema habilita o indivíduo a vivê-lo?

Ou será que me identifico mais com o slogan “Viver com o vírus da SIDA é possível, mas sem ele é melhor”? No momento, já em nenhuma certeza mais me arrisco encostar. De repente, vejo as minhas convicções, preconceitos, optimismos e receios, apoiados em cima de um tapete escorregadio. Alguém estaria preparado para ouvir a notícia de que somos seropositivos?

Usando da honestidade, de si muito ligada à minha personalidade, assumo que não estou (afinal) preparado para ouvir que sou HIV positivo. Trouxe-ma o sonho esta verdade. Entretanto, penso que não é este o ponto. A questão é: o que fazer perante tal fraqueza? A resposta que me ocorre não é nova: há que levar a vida de modo a afastar, o mais longe possível, os riscos de contrair a infecção. O uso racional da sexualidade faz a diferença.

Gociante Patissa, aeroporto da Catumbela, 28/02/09
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8 Deixe o seu comentário:

Afrika disse...

Entendo a reacção que tiveste perante tal sonho. Suponho que nunca estamos preparados pra este tipo de situações. Há quem se diga preparado pra um acidente de carro e que ate pode reagir rapidamente, mas acaba por deixar sempre marcas conforme o grau de gravidade do acidente. Mas não acredito que consigamos mesmo estar preparados pra uma situação como descobrir que somos portadores do vírus ou pior que sofremos do mesmo. Tal como nunca estamos preparado pra saber que temos um cancro, que a nossa vida esta marcada por um curto espaço de tempo. O melhor mesmo como dizes é a prevenção, por como diz o ditado "o seguro morreu de velho"
E talvez o sonho só viesse reflectir mesmo isso, que estando tão perto e por teres abraçado a luta contra a Sida os teus medos não desaparecem, porque afinal continuas humano e tens sentimentos, mesmo que o facto de ser jornalista te obrigue a ignorar os mesmo.

Anónimo disse...

Querido Patissa
Não sei se mesmo os monges estarão preparados para ver marcada a data da unica certeza de nossas vidas: a morte.
O caminho até ela qdo se é portador de doenças socialmente mal préconceituadas como a aids é muito doloroso.
O seu pesadelo é profundamente justificável, pelo seu engajamento nessa luta.
Bjs
Dulce

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Olá, amiga Africa!
Saudações, amiga Dulce!
Que bom voltar a ler vossas ideias, que bom que "aceitaram" interpretar e sugerir perante um tema tão subjectivo?
Vocês podem não ter dado conta, mas acabarm também por querbrar o "jejum" de comentários. O pessoal anda muito ocupado com a crise económica e a estupidez africana (assumo os termos) de andar aos golpes de estado e assassinatos. É uma vergonha o que se passa na Guiné Bissau.

Soberano Kanyanga disse...

O orgasmo são apenas alguns segundos... E se reflectirmos antes de o provocarmos?

Carol Vicente disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carol Vicente disse...

Caro Patissa,
quase adentrei no teu sonho através desse relato-questionamento que de modo seguro conduzes aqui. Partilho do desejo de sonhos-revelações de dias, ainda que correndo o risco do outro lado da moeda.
Ratificando Jung, acredito que sonhos podem ser avisos, bem mais que simples desvarios do inconsciente... Se eles andam a te avisar, previne-te! Se eles não te forem suficientes, vivas e é só!

Anónimo disse...

Querida Patissa
A história que Você conta no blogue tocou-me muito de perto.
Não tenho a sua sensibilidade poética no domínio da escrita. Sou mais tecnicista mesmo. E é nessa perspectiva que gostaria de lhe dar os parabéns pela forma como aborda o tema da SIDA.
Não tenho HIV SIDA, mas conheço e convivo com pessoas próximas que CONVIVEM (e VIVEM) no quotidiano com essa situação. Elas demonstram-me todos os dias que é possível VIVER e não apenas SOBREVIVER numa situação como a que Você descreve! A esperança não é uma quimera, já é uma realidade! Não é fácil, certamente. Mas é possível.
Felizmente, do que me vou apercebendo, até pelo contacto com essas Pessoas que me são queridas, a realidade hoje em dia já não tem de ser um pesadelo. A tecnologia evoluiu muito e, atualmente, dois comprimidos por dia permitem um dia a dia normal, uma vida normal. Permitem mesmo continuar a alimentar sonhos e concretizar projetos.
Tudo tão diferente dos longínquos anos 80 e 90 do século XX em que os doentes tinham de tomar doses infindáveis de comprimidos e líquidos horríveis com efeitos secundários que tiravam a esperança e a dignidade!
Hoje em dia a SIDA já não é (ou não tem de ser) uma doença fatal. É mais uma doença crónica que, com alguma disciplina quotidiana, permite uma (longa) vida normal. Nem tudo são rosas, eu sei. E cada caso é um caso, sem dúvida.
Claro que eu falo de um ponto de vista europeu, onde os hospitais estão apetrechados tecnologicamente e têm recursos humanos prontos a atacar o vírus. Falo de países onde o acesso aos medicamentos para TODOS os doentes infetados é UNIVERSAL e GRATUITO. Onde as psicoterapias cruzadas são rotina de tratamento. Falo de países onde o número de infectados vai (ainda) aumentando mas a ritmos decrescentes.
Sei que na África a situação é muito pior. Eu sei. Pior ainda, sei que a situação nesses países tende a piorar e não a melhorar. Sei que países tão queridos para nós Portugueses, como Angola e Moçambique, se debatem com um desafio de proporções gigantescas que ainda obriga a interiorizar o HIV SIDA como um PESADELO.
Eu sei.
Mas também sei que nesses países há pessoas como Você a lutar, a implementar campanhas de prevenção (a sua magnífica história no blogue é uma magnífica campanha de prevenção).
A luta começa por aí mesmo! PREVENIR, INFORMAR, DEBATER. Criar lóbis de consciencialização da sociedade civil, lóbis de pressão governamental. Para que os Governos invistam mais na saúde que na guerra, mais na educação que na propaganda. Que apetrechem os hospitais e invistam em muitas escolas e se deixem de retórica política. Que olhem para o Povo como PESSOAS e não como objetos eleitorais. A África do Sul talvez seja um bom exemplo de relativo sucesso aí tão perto.
Para que um dia, enquanto a vacina ainda não existe, também aí nesses países, em particular na sua (e minha) querida Angola, a SIDA deixe de ser um flagelo fatal e possa ser vista com a normalidade possível da vida. Para que, quem estiver infectado possa viver com dignidade e disfrutar da felicidade que certamente merece. Porque, acredite, isso é possível! Não é sonho, já é uma realidade aqui na Europa! Para que o sonho também chegue aí, continue a escrever e a lutar.
Um abraço
Abraão Luís H. G. Silva (Porto, Portugal)

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Ilustre GREENDAY, é com satisfação que registei seu contributo. É no fundo esta interacção q me "força" investir tempo n Blog.

Fica omeu apreço e o desejo de vê-lo visitar-nos sempre!

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

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Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

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Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

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