sexta-feira, 20 de março de 2009

Crónica: Há dez anos que nos atrevemos a pensar mais que a idade

Seriam de lembrar com nostalgia – se fosse possível lembrar algo que nunca foi esquecido – as palavras de um “kota”, quando iniciávamos, ingénuos mas determinados, a caminhada no sector da sociedade civil. Dizia-nos, então, o companheiro que “os projectos são o sangue da organização”. A pertinente metáfora dos passos, se entendermos que, face aos problemas comunitários, a inteligência e a capacidade de acção das “Organizações” devem ser sistematizadas.

Fundar uma Organização Não Governamental em Angola é fácil, bastando para isso guiar-se pela Lei das Associações 14/92. Agora, manter a tocha do crescimento no contexto de desenvolvimento, aí já a conversa é outra! Não sendo a maior nem a mais antiga das ONG’s, é no entanto justo que na Associação Juvenil para a Solidariedade aumente a alegria por se completar uma década de vida em Dezembro próximo. O que ela, a AJS, não pode é ser culpabilizada pela mania que um dos seus membros tem, a de cronicar.

Éramos jovens, como quaisquer outros, por isso mesmo com o livre arbítrio para nos posicionarmos (ou não) contra os problemas
os nossos e os da nossa sociedade. Talvez fosse utopia demais, naquela altura, para se assumir o inconformismo perante o drama dos “marginalizados”. Corria o ano de 1999 e estavam à vista as crueldades sociais da guerra civil, com muitas famílias angolanas juntando poupanças para a passagem de avião rumo ao estrangeiro. A maioria esmagadora porém estava “condenada” a não sair. Enquanto isso, intrigava-nos qualquer inércia perante velhos abandonados, deslocados, crianças de rua, bem como homens, mulheres e crianças possuídos pelos vícios do álcool e drogas, etc.

Se, por um lado, a lei não permite que menos de sete pessoas criem uma associação, por outro, a própria história encarregou-se de neutralizar várias cooperativas cujos líderes ousaram ofuscar o espírito de grupo, chamando a si todo o protagonismo (como se fossem donos de empresa). Não sendo o nosso caso, modéstia à parte, estou à vontade em enunciar “recortes” da nossa fase embrionária sempre que forem necessários.

A ideia surge durante o habitual balanço que faço da minha vida quando chega a data do aniversário. Estava ameaçado o meu emprego de ajudante de soldador (na prática, era armazenista/tradutor/intérprete do Superintendente de Soldadura) no estaleiro da Sonamet-Lobito. Desobedecera a ordem de impedir que trabalhadores descontentes conversassem à sombra do meu armazém (eu ganhava apenas USD 120 por 10 horas diárias de trabalho, ou seja, o compatriota que cuidava do WC ganhava apenas USD 20 menos). Foi então que brotou a ideia de criar uma Associação, que juntasse voluntários pela causa da solidariedade.

Nos dias que se seguiram, fui ter com o Edmundo, amigo que conheci na Escola do 3º Nível dos Bambús, na Catumbela em 1995. Daí incluímos a Mirita, irmã dele, mais o Simão, um brincalhão por natureza que “aquece” qualquer iniciativa juvenil. O recrutamento cresceu até 15 membros fundadores. Mas para além da nossa sensibilidade, influenciada talvez pelo curso médio de ciências sociais no PUNIV, “nada” mais tínhamos. Faltavam-nos influência, métodos, fundos, conhecimentos – em suma, experiência. O pior é que já havíamos ido “longe demais” para pensar em recuar.

Tal o sentimos, por exemplo, no Cartório Notarial da Comarca do Lobito, onde reprovaram as nossas quatro páginas A4. «Isso aqui não é estatuto, ó jovens!», dizia funcionário. «Quer dizer, vocês se juntam, escrevem qualquer coisa e vêm para legalizar?!», posso me enganar na letra, mas era este o espírito do homem, que não imaginava o esforço em conceber o texto e, mais ainda, que aquelas páginas levaram a mãe do Edmundo a abdicar do almoço para a respectiva “computarização”. Houve ainda a promessa (seis meses à espera) de patrocínio do Director de uma empresa estatal que só chegou para encomendar o primeiro carimbo. «Estamos a fazer tudo para ter a nossa sede», prometíamos para tranquilizar os membros (quase todos mais velhos que nós, os da comissão instaladora), que transpiravam durante as reuniões no recinto da escola Rei Mandume sempre que o Director não quisesse deixar a chave de uma das salas. Quando concluímos o processo de legalização, escasseavam a logística do PAM, ditando o fim de muitas ONG’s.

As parcerias foram a luz guia. Pouco a pouco, as capacitações e intercâmbio foram enriquecendo as nossas capacidades e habilidades e aumentava a visibilidade. “Humildade, Justiça e Solidariedade” era a divisa, e aprendemos que os financiamentos/doações são bons, mas o melhor é não “parar de pensar” quando não existem. Lembro-me das caminhadas da praça da Kalumba até à Restinga (cerca de 7 km), cruzando a salina, para participar das reuniões da Rede Municipal da Criança de Rua do Lobito, com a Okutiuka à cabeça.

Um outro “formador” disse-nos certa vez que as instituições não existiam como tal, mas sim em função das pessoas que as representavam. E, já agora acrescentando, diria que são os representantes que por elas concebem as ideias, sentem a chatice directamente, assim como, merecidamente, sobre eles recaem os elogios por cada iniciativa pertinente ou posição corajosamente bem assumida (no caso, agradável ou não). Mobilizamos comunidades, convencemos doadores, mais jovens se juntam à causa. E mesmo que um dia nos falte tempo para continuar a servir, será com o sentido de ter feito história a nossa “aventura”.

Teria sido diferente a vida de jovens que (um dia) se envolve(ra)m de corpo e alma pela AJS? (A filosofia diz que tudo muda: ou para melhor, ou para pior). Provavelmente teríamos mais fins-de-semana livres, menos oportunidades de formação, menos compromisso com a sociedade. Bom, talvez não tivéssemos nunca de enfrentar olhares (invejosos?) de adultos “estáticos”, pouco acostumados a ombrear com jovens nas mais diversas frentes da cidadania. Ainda há gente que ensina e ao mesmo tempo se irrita se aprendemos.

Gociante Patissa, Benguela-19 de Março de 2009 (Coordenar do Programa de Direitos Humanos e responsável pela vertente de comunicação e TIC na AJS).
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1 Deixe o seu comentário:

Soberano Kanyanga disse...

Amigos,
Força! Quem está na chuva é para se molhar e a vossa causa é justa. À luta (pela justiça e solidariedade) e em força!

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