LITERATURA. Gociante Patissa entende que se devia investir “numa crítica literária endógena”, mas nega que o futuro da literatura angolana passe pela diáspora. Em entrevista ao VALOR, o escritor reprova o “’status’ secundário” dado às línguas nacionais.
Nasceu, licenciou-se e trabalha em Benguela.
O que falta para haver mais jovens a prosperarem nas suas províncias e não se
afunilarem só em Luanda?
Luanda é o centro geográfico do poder e das oportunidades. Em
algum momento na minha vida, pensei na possibilidade de deixar Benguela,
enquanto melhores oportunidades de formação e progressão profissional
surgissem. Não surgiram. Se calhar não era para ser.
Porque é que diz que, em Angola, as línguas
nacionais têm ’status secundário’?
Houve uma certa distracção logo que se deu o corte com a
dominação colonial. Sabe-se, por exemplo, que, nas comunidades dos
trabalhadores dos Caminhos-de-Ferro de Benguela (CFB), era expressamente
proibido falar línguas indígenas. E não houve um trabalho posterior no sentido
de libertar as mentes durante décadas formatadas. No interior, ainda nos anos
1980, era passível de castigo falar-se umbundu, com direito a uma espécie de
caça e denúncia ao erro, para as merecidas reguadas do professor. Herdou-se a
pedagogia da estigmatização. Ainda hoje, quando alguém fala mal o português, a
reacção é rirem-se dele. A nível institucional, um exemplo é o do designado
jornalismo em línguas nacionais, que, na verdade, nos serviços informativos, é
apenas uma tradução a quente do texto em português. É frequente ver a
preocupação em contratar-se um tradutor quando o país recebe entidades até de
países de expressão espanhola. Quando se trata de autoridades tradicionais,
vemo-las a esforçar-se num português que mal dominam, expondo-se ao ridículo da
estigmatização social.
O que o Estado devia fazer para definir uma
política em que as línguas nacionais tivessem melhor ‘status’?
A primeira é a harmonização da grafia das línguas de raiz bantu,
acabando-se com isso da grafia católica ‘versus’ a convencional. Até lá, fica
comprometida a produção de literatura nas línguas nacionais. A segunda é rever
a toponímia e devolver o sentido proverbial dos nomes das localidades. O que
existe é a perpetuação da corruptela deixada pelo regime colonial. Deve haver
maior diálogo entre os ministérios da Administração do Território e o da
Cultura.
Publica regularmente, mas há quem se queixe
dos custos para impressão no país…
Não forço nada. O meu trabalho é pesquisar, escrever e caçar
gralhas; agora, financiar, promover e distribuir é tarefa de outros agentes do
sector livreiro.
Em 2012, foi distinguido com o Prémio
Provincial de Benguela de Cultura e Artes. Que impacto teve na sua carreira?
Recebi quase 600 mil kwanzas do Estado, o que sempre cobre
alguma despesa. Mas o impacto não é muito grande, desde logo porque os livros
não circulam. Contudo, fica o valor simbólico.
Concorda que o futuro da literatura angolana
passa pela diáspora?
Negativo. Uma coisa é ter acesso a uma rede de editoras
acutilantes, bem relacionada com o ‘lobby’ na academia e na imprensa, outra
coisa é julgar-se o mais representativo de uma realidade vivida à distância. O
futuro da nossa literatura passa por investir numa crítica literária endógena,
que não nos meça pela bitola do leitor europeu. Isso consegue-se com formação
consistente, bolsas para os nossos estudantes e pensadores irem ao estrangeiro,
depois regressar com uma bagagem técnica que saiba comer funji, lombi, mahini,
kitaba, fumbwa. Há que reactivar a indústria do papel. Se temos uma população com
uma herança assente na oralidade, então um livro caro não vai figurar entre as
prioridades.
Possui um blogue com espaço para críticas a
livros, mas alguns nunca foram sequer comentados. Isso ocorre porque se lê
pouco em Angola?
Com o ‘boom’ das redes sociais, os blogues passaram a ser
passivos quanto a serem comentados. Mas há que lembrar que a crítica literária
angolana é ainda inexistente. Quem determina o que tem ou não qualidade são os
portugueses, salvo algumas excepções. Os estudiosos de letras enveredam logo
para a docência. Talvez haja pouco incentivo à investigação.
De 0 a 10, que nota daria à qualidade da
literatura feita actualmente por angolanos?
Não me julgo com autoridade académica para uma tão generalista
avaliação.
PERFIL
Daniel Gociante Patissa- nasceu no Bocoio,
Benguela, há 38 anos. É licenciado em Linguística, especialidade de
inglês, pela Universidade Katyavala Bwila. Além de já ter publicado mais
de seis livros, tem participação em diversas antologias, sendo também membro da
União dos Escritores Angolanos.
Nota do Blog Angodebates:
Saiu na edição de hoje (03.04) do jornal Valor Económico uma entrevista com sua excelência eu, feita via questionário que me foi endereçado pelo profissional Onélio Santiago. Imagino o trabalho que terá dado essa coisa dos arranjos para o todo caber no espaço concedido pelo jornal, mas no essencial tudo se mantém. Contudo, manda a honestidade intelectual dizer que embora a versão publicada omita, faço uma citação na resposta quanto ao status secundário das línguas. A parte final seria:
"Alguém certa vez reclamou o que lhe parecia injusto, pois é frequente ver a preocupação em contratar-se um tradutor quando o país recebe entidades até de países de expressão espanhola. Entretanto, quando se tratar de autoridades tradicionais, é vê-las esforçando-se num português que mal dominam, expondo-se ao ridículo da estigmatização social."
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