Job Sipitali tem
uma história de vida digna de narrativa. Aos sete anos viu o pai, a mãe e um
irmão assassinados, durante a guerra civil, no município do Cubal, sua terra
natal. Aos 22 anos, troca o interior pelo litoral da província de Benguela, atrás
da vocação para o sacerdócio. Concluído o ensino médio, descobre que afinal ser
padre não era bem o que queria para si no futuro. Abandona o Seminário para
frequentar o curso universitário de linguística/português, mas os caminhos
retornariam à Casa dos Rapazes: agora contribui dando aulas de literatura
africana de expressão portuguesa e a cadeira de latim. Sereno, tímido, franzino
e com uma articulação influenciada pelo umbundu, sua língua materna, Job Sipitali
traz uma poesia concisa, proverbial e penetrante, enfim um material esteticamente
pronto para saltar da gaveta para as páginas de um livro. O Blog Angodebates
conversou com aquele que já foi membro do Movimento Lev’Arte e que há dois anos
co-fundou a Associação Literária e Cultural de
Angola (ALCA).
Texto e fotos: Gociante Patissa, Benguela, 17.03.2017
Blog Angola,
Debates e Ideias (Angodebates): Onde foi que viveu a sua infância?
Job Sipitali (JS): No Cubal. Nasci
em 1985. Passei por uma vida, digo assim, caricata no Cubal que me viu nascer.
Fiz o ensino primário, o secundário, no mesmo município. Em 2007 saio de lá e
tive essa oportunidade de entrar para o seminário, vi que tinha vocação. Fiz o
seminário menor. Terminei o ensino médio, infelizmente, não quis avançar para a
filosofia. Saí e fui para o ensino superior. Graças a Deus terminei e estamos
para defender ainda mesmo no próximo mês.
Angodebates: Que
curso seguiu? Sabemos que foi no ISCED, da Universidade Katyavala Bwila, certo?
JS: Certo. Fiz o
curso de Linguística/Português, ISCED, que é ciências da educação.
Angodebates: Vamos
voltar ao Cubal. Falou em infância caricata vivida lá. Que recordações tem da
infância: momentos felizes e momentos difíceis?
JS: Eu tenho uma
recordação difícil, por ter perdido os pais ainda aos meus sete anos. Digo que
é uma vida caricata, por ter perdido mesmo os pais, isto é na guerra, e também
o irmão mais velho, digo o primogénito. E [quanto] aos tempos mais felizes na
infância, normalmente nós brincamos, assim como na igreja, igreja católica.
Momentos mais felizes, também os estudos, que ajudaram bastante a entrar no
mundo da literatura.
Angodebates: O
que é ou como concebe a literatura?
JS: Eu concebo a
literatura como o ponto subjectivo de cada um. Sim, cada um tem a sua visão de
como funciona a literatura. A literatura é a visão ampla de cada um.
Angodebates: De
que forma é que a literatura sempre esteve (ou não) presente na vivência da sua
comunidade ou então está presente no dia-a-dia das pessoas?
JS: A minha visão é
que a literatura não está tão presente. Eu vejo que não há muita entrega, por
mais que eu tenha dito que a literatura está na subjectividade cada um, não há
muita entrega à literatura. Há muitos jovens que se deixam levar, não se
importam tanto com esse mundo da literatura que é tão benéfico, o que é
perigoso.
Angodebates:
Quando foi que se despertou em si o bicho do fazer poético?
JS: Depois de ter
entrado no seminário. Acho que ali tive a oportunidade de ter essa ousadia,
assim como pessoas amigas e alguns colegas que declamavam, que faziam teatro,
apresentavam muita coisa. Mas também não foi assim de pé para a mão. Observava
colegas a declamar e a escrever. Mais tarde tive mesmo a curiosidade de entrar
neste mundo por um poema. Já não me lembro. É de um escritor angolano, acho que
João Tala. Despertou-me bastante. Tive uma pequena imitação de um dos poemas
dele. Começa com o verso “Há tempo para viver”, mais ou menos assim.
Angodebates: Olhando para o seu trabalho, nota-se que há um distanciamento em relação à tendência dos da sua geração. Normalmente, o que se vê são poemas longos, discursivos, com um ultra-realismo, que alguns mais velhos chamam “canta-lutismo”, aquela nota acentuadamente pessimista e declarativa, aparentemente sem grande labor estético. A poesia de Sipitali marca-se pela diferença. Nota-se um lado proverbial, um lado conciso, um lado profundo. Tem noção disso?
JS: Sim. Tenho noção.
É a minha tendência – já definimos o que é a literatura, que eu disse que era a
subjectividade de cada um. Então eu procuro mesmo distanciar-me daquilo que
alguns escritores têm feito. Há muitos poemas longos. Percebemos muito bem que
após o romantismo, cada um queria a própria liberdade de escrita. Eu procuro
sintetizar as minhas ideias. Então posso mesmo ser chamado de poeta proverbial.
Muito conciso. Assim procuro trazer mais ideias. Não gosto muito de me alongar.
Angodebates: Como
ocorre o seu processo criativo? É daqueles que acham que só funciona tendo uma
hora ou um lugar específico para criar?
JS: O meu processo
criativo é mais de forma particular. A minha literatura não é essa de ficar a
declamar. Eu escrevo para a vida. Aliás não tenho poemas para serem declamados,
mas sim para serem publicados. Escrevo para todas as gerações. Não sou um imitador. Alguns poetas
enganam-se tanto neste mundo da literatura e os seus poemas acabam por perder
valor, porque a escrita é mais declamativa…
Angodebates: Mais
espectáculo?
JS: Exacto! Mais espectáculo e ficar aí em muitos
gritos. Não acho que a literatura poderia passar por ali. Então vamos escrever
mais seriamente.
Angodebates: Quais
são as suas referências criativas de modo geral?
JS: Tenho muitas
referências. A primeira é Consulado do Vazio. É uma obra que me despertou
bastante. Leio também, de modo geral, Luís Vaz de Camões. Leio algumas obras de
João Tala, mas não é tanto. Gosto mais de [Adriano] Botelho de Vasconcelos…
Angodebates: É
muito hermético. Muito complicado de descodificar. Concordas?
JS: Sim (risos). É um
escritor muito subjectivo, mas gosto desses poetas que trazem assim uma
literatura muito complicada para nós. Em Portugal gosto de ler Fernando Pessoa.
Angodebates: Para
além da formação universitária, dedica-se à docência?
JS: Sim. Dou aulas de literatura africana de expressão portuguesa aqui no Seminário Médio do Bom
Pastor. Também lecciono uma cadeira que é a língua latina. Aqui sou tradutor
também. Mesmo neste momento, os alunos estão aí a traduzir.
Angodebates: O
latim é tido por muitos como sendo uma língua complicada. Imagino que não seja
essa a sua opinião?
JS: Não, não. Não é
uma língua assim complicada. Talvez podia ser complicada para alguém que não
tenha domínio de mais de uma língua. Aliás, os que fazem o Direito têm sempre
alguns textos em que a base tem de ser o latim.
Angodebates:
Quantas línguas domina?
JS: Domino duas. Como
a língua materna, o umbundu; segunda língua, o português.
Angodebates: Dá
aulas cá de literatura africana de expressão portuguesa. Gostaria de ouvir a
sua visão do panorama da literatura feita no espaço de língua portuguesa.
JS: Falar sobre a
literatura de expressão portuguesa no espaço africano, aborda-se mais a
literatura antes das independências. Então a temática está sempre em torno da
liberdade, assim como os textos de José Craveirinha, “Eu sou Carvão”; outros poemas
de Agostinho Neto. Essa poesia antes da independência tem simplesmente uma
[temática] que é a luta, que é de combate. Por isso é que os textos têm uma
temática mais modernista, que é a objectividade, não tanto a subjectividade.
São textos que nos levam mais a perceber o que é que ocorreu no passado. Após a
independência, já temos textos mais um pouco subjectivos, por mais que alguns
escritores ainda estejam com o passado.
Angodebates: Ao
referir-se mais aos autores das décadas de 50, 60, 70 (séc. 20), isso tem
apenas a ver com o tempo que a academia leva para escrutinar que obras ensinar,
ou porque acha que a produção de lá para cá não foi promissora?
JS: A produção não tem
sido tão promissora porque houve uma fase em que escritores angolanos [negros]
não podiam chegar ao público; era uma literatura assim fechada. Graças a alguns
intelectuais que foram estudar a Portugal e criaram a Casa dos Estudantes do
Império, que trazem a nova literatura angolana. Sabemos que a própria nossa
literatura dita escrita começa em 1950, senão 1948. Antes disso, a literatura
mostrava mais os feitos dos portugueses. Então é esse preconceito que nós
temos.
Angodebates:
Olhando ainda para a literatura de expressão portuguesa no nosso continente
africano, e em Angola, o que é que você gostaria de ver melhorado? Que aspectos
é que em seu entender não estão tão bem?
JS: Eu teria começado
por uma citação da obra de Mia Couto: “E Se Obama Fosse Africano?” Lá aborda
alguns preconceitos hoje. Fala dos sete sapatos sujos. A ideia de que os
culpados são sempre os outros e nós somos sempre vítimas. O que não está bem
actualmente, há um processo que eu chamaria de permissivismo; hoje a sociedade
angolana permite tudo. O que não está a ser abordado é a questão da cultura, a
língua. Há muitos jovens que se perdem, não gostam de assumir que são
angolanos. Eu não queria citar aqui alguns que já perderam até a sua cor. É
mesmo a perda de valores culturais e a própria língua, que é uma identidade
humana.
Angodebates: Vamos
voltar uma vez mais ao seu trabalho. O seu devaneio criativo ou a alma de poeta
flutua mais no espaço urbano ou rural, uma vez que você tem estas duas experiências
de vida?
JS: A minha literatura
flutua também no campo urbano, mas é mais no rural. Tenho alguns traços por ter
vivido entre o rural e o urbano. Então revelo recolhas de lá, mas como estou a
viver mais na cidade, olho mais para os comportamentos sociais. Há também
alguns livros que me trazem ideais que possa descrever nos meus poemas.
Angodebates: Como
falante de umbundu, eu arriscaria em dizer que há um diálogo intenso e
permanente na sua literatura com a tradição oral. Concorda com isso?
JS: Concordo. Por ser
proverbial, há sim! Há alguns traços intensos nos meus poemas.
Angodebates:
Considera o seu trabalho de poeta como sendo influenciado pela sua faceta de
tradutor?
JS: Sim. Em todo o meu
trabalho há sempre traços de tradutor mesmo (risos). Há uma interferência
linguística. Nos meus poemas há sempre esses traços.
Angodebates: Livro
ou disco? Qual seria o formato ideal para divulgar a sua obra?
JS: A minha
literatura, nos meus pensamentos, não gostaria que passasse pelos discos.
Angodebates: Tem
algum trabalho publicado ou participação em alguma antologia?
JS: Não. Também ainda não
estou em nenhuma antologia. Houve uma em que iria participar quando fazíamos
parte do Movimento Lev’Arte. Tenho sempre esse sonho.
Angodebates: A
minha experiência de quem andou no sector da sociedade civil e viu muitas
associações e redes nascerem e morrerem, leva a reflectir que em muitos casos, tais
iniciativas não vingam porque não há uma convergência de interesses. Isso se coloca
no caso dos movimentos e associações literárias? Ou seja, acha que os membros
quando se filiam a estas associações e movimentos literários têm uma noção
clara do que esperam receber e do que podem dar?
JS: Sim. Há. Todo o
jovem que se junta a uma associação, espera receber alguma coisa. Muitos gostam
mais de receber do que de dar, e as associações morrem por causa disso. A juventude
gosta de formar essas associações, mas depois não cumprem.
Angodebates: Alguns
jovens procuram ser escritores por via da associação. No seu caso particular,
ao filiar-se a uma associação, o que é que espera dela?
JS: O que eu espero da
associação não é simplesmente que os nossos textos sejam publicados. Um dos
objectivos da nossa associação (ALCA) é publicar. Mas quem entra só por isso,
quando vê que as suas obras não estão a ser publicadas, a tendência é de sair e
buscar tocar mais em outras pessoas para esse fim, o que tem levado também
tempo.
Angodebates: A
publicação de livros tem uma vertente logística. Que apoios você considera que
deveriam existir e vindos da parte de quem?
JS: Para alguns, o
apoio é só moral. Mas acho que o estado devia apoiar, porque alguns empresários
dão algum apoio, só que a literatura não é o campo deles.
Angodebates:
No seu poema “…A Gramática E A Zungueira…”, dois versos despertam atenção. Um diz
“Corrige-me o sofrimento não a gramática”, o outro diz “Corrige-me tudo, menos
o pensamento”. Será a reafirmação da sua solidez cultural e identitária, ou
será por eventual medo de ser mal interpretada sua voz de poeta?
JS: É para dizer que
eu sou firme na minha dimensão cultural. “Corrige-me tudo, menos o pensamento”.
Cada ser tem aquilo que lhe apraz, do fundo da alma. E hoje existe muito
[preconceito] da própria interferência linguística de que já falei; alguns
dizem ‘estão a errar’, mas há um traço cultural. Portanto, a entrada de uma
outra língua não nos pode trazer, digamos assim, escândalo.
https://angodebates.blogspot.com/
…A GRAMÁTICA E A
ZUNGUEIRA…
Corrige-me
o destino
não o pensamento.
Corrige-me o
sofrimento não a gramática
que gosta de comer
bem com os verbos e esquece-se dos
pronomes
personificados, dos pratos típicos e quentes da sintaxe.
Corrige-me a
palavra,
não a polissemia
que gosta de ser híbrida.
Corrige-me tudo,
menos o pensamento.
…O
MITO DA COR…
Toma-se a cor pela
palavra.
A garganta
enriquece-se
de mitos nocturnos.
A fogueira evoca
os espíritos,
enquanto a lenha
se prolonga
esperando a
verdade.
Mente quem conhece
a
história do
pescador de palavras.
E eu sou balaio
que se estende ao silêncio.
…À
PROCURA DE IDADE…
Como se prepara a imortalidade?
Pede existência
aos pais.
Fica doente e não
procures saúde,
mas viaja para ela
se alegrar.
Toma o que quiser.
Pronuncia Humano
no silêncio.
Agora vai ao
hospital.
Morre no banco de
urgência.
Atingiste a idade
(a confissão diária).
Job Sipitali
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Excelente trabalho carissimo Gociante Patissa, tal como ja havia referido, conheço bem este jovem batalhador Job Sipitali, e dentre vários dons que possui é também uma pessoa meiga e dócil de se dar, excelente ser humano. Agradeçemos a Deus por o ter protegido e guiado apesar da vida pacata e as tristes marcas do passado. Temos ali um grande diamante que precisa ser aproveitado... Abraços e bem haja o blog AngoDebates e ideias...
Ass: Guilherme dos Santos
Muito agradecidos pela sua visita, caro Guilherme dos Santos, pela visita ao blog e pelas palavras de encorajamento. Desejamos êxitos a si e ao Agrupamento 192 Nucleo 01 Bga.
Volte sempre
Gociante Patissa
Benguela é realmente uma terra de pessoas com veias a escorrer o sangue quente de grandes artes, aí está mais um caso de Job Sipitali que doravante Angola inteira o conhecerá pelos bons traços e características criadora que herdou desta bela cidade das Acácias Rúbras. Gostei da entrevista promovida pelo Angola Debates e Ideias, e pelo rico historial que o autor tem.
Bem haja!
AJJ
Gostei muito de ler esta entrevista.
Foi uma agradável surpresa.
Há um tempo pra cá tenho vindo a estudar os vários fenómenos de redigir, criar textos poéticos em comparação à literatura (poesia) antes e após independência) e a actual (sêc. XX. 2000). Percebo que, ainda, muitos não se libertaram da anterior forma literária feita. Vendo o kamba Job Sipitali, reabre o dia e a nuvem que porcalhava o sol fica pra atrás e há sorrisos, há literariedade nesses poemas do kamba. Entretanto, precisamos rever, estudar o processo de criação literária angolana pra proclamarmos a neo-independência literária à luz da literariedade.
Parabéns kamba Job SIPITALI.
PAZ E AMOR...
TU TONDELE.
Os meus abraços ao meu amigo e companheiro de sempre... Eu não sabia de tudo escrito supra, mas fiz parte da metade da mesma história!
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