O
que será que restou do pujante cantar kwanyama (oshiwambo), geração que na
década de 80 nos alimentava através da Rádio Nacional de Angola, coral (à
capella) rico de harmonia e conteúdo, apesar de engajado na luta pela
libertação liderada pela SWAPO? É a indagação de retórica que me ocorre quando
visito a vizinha Namíbia.
O
meu guia despede-se com a sensação de missão mais do que cumprida, ainda por
cima voluntária. Estou entregue ao taxista que atende pelo nome de DJ. Não gosto
muito do nome à partida, por me soar impessoal. De temperatura ambiente vamos
com 37º C. Ar condicionado? Nenhum. O vento é forte ao longo dos 60 Km entre Oshikango,
no Norte, e Oshakati, no Oeste. A música é servida em tom de ralhar. O DJ não
pára quieto no assento, e não é pelos saltos – a estrada até é impecável.
Entusiasmado,
fala-me do êxito empresarial de um cantor. Gaza é o nome. Está perto de me
chatear o volume quando ele acrescenta, orgulhoso, que o astro, a residir na
capital Windhoek, é natural de Oshakati. Por acaso, dele nada sei. O DJ quase
não acredita. Enfatiza que Gaza chegou a fazer dueto com algum angolano, mas ao
fim de um breve esforço mental, em vão, acaba reconhecendo que afinal só o fez
com sul-africanos. Neste instante, talvez para me alegrar, toca um dos mais
ocos temas de Yuri da Cunha, “atchutchutcha”. Aposto que ele não percebe a
mensagem, basta-lhe a batida.
Na
verdade, não é exagero nenhum dizer que não há intercâmbio cultural entre as
repúblicas de Angola e Namíbia, em termos de consumo de produtos artísticos, não
obstante o facto de haver povos de um mesmo grupo etnolinguístico dos dois
lados, com a divisão do então reino dos Kwanyama, fruto da conferência de
Berlim. O facto de se falar o português de um lado e o inglês do outro poderá
ser uma barreira considerável. E onde apenas o comércio fala mais alto (com os
angolanos a injectarem mais receitas na economia da Namíbia do que o inverso), o
intercâmbio cultural fica-se pelo superficial, com o risco de cada lado
importar o que de pior o outro tem, por ser mais o visível.
Com
a consagração da música electrónica nas duas últimas décadas, o mercado na
região sub-sahariana destaca-se cada vez mais pela percussão do que pela
harmonia, entre tambores e “beats”. Assim, os holofotes angolanos viram implantar-se
aos poucos estilos dançantes, entre eles o “kwaito” e o afro-house, oriundos da
África do Sul e Namíbia, lado a lado com o ku-duro. Lado a lado é uma forma
generosa de colocar as coisas, tão evidente que se desenha a decadência do
ku-duro, um pouco por culpa do perfil problemático e intelectualmente
inconsistente de proeminentes cultores do estilo.
Nada
tendo contra a ruptura estética consciente, que geralmente implica o domínio
dos padrões por parte de quem impõe a nova tendência, repugna-me todavia que
nos imponham como sendo do melhor que há numa determinada sociedade figuras que
mal dominam o elementar do que se propõem, não nos faltando em Angola verdadeiros
desastres vocais cuja visibilidade assenta em outras ideologias, que não a da arte.
No
caso da minha recente visita à Namíbia, foi pois com elevada satisfação que me
deparei com o trabalho da jovem Blossom (ou Ruusa
Ndapewa Munalye), melhor voz feminina e prémio revelação do Namibia Annual Music Awards 2013, com o
álbum “Komuthima Gwomeya”. A miúda
ousa remar contra a maré do seu mercado ao apresentar um produto com estética. Tem
melodia, ginga, harmonia e poesia. Uma desenvoltura que associa ao talento
várias horas de trabalho e aprendizagem. Canta em Inglês e em Oshiwambo, a sua
língua materna. Ah, e a esquebra: é bonita!
No
Youtube degustamos os temas “indikupapatele” (soul, que quererá dizer deixa-me
abraçar-te) e “ondjila yetu” (zouk, que significa o nosso caminho). Do primeiro
é digno de realce o verso “you are the reason I believe in love” (tu és a razão
pela qual eu acredito no amor). Se amanhã ceder às leis do mercado, que trocam
a intuição criativa pela mesmice do oco exigido pelo público, a artista Blossom
deverá ser “perdoada”, não é que não se tenha esforçado em remar contra a Maré.
Gociante
Patissa. Oshakati, Namíbia, 20 Setembro 2015 (foto: Namibian Sun)
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