Tem muita piada, muita mesmo, o argumento
"refinado" na classe intelectual para defender esse erro
administrativo de nos continuarmos a negar a nós mesmos em nome da
"união". Em duas ocasiões diferentes, uma num programa radiofónico emitido
de Luanda para o país todo, outra noutro programa também radiofónico por
Benguela, passou-se a ideia de que "quando
escrevemos cota com a letra C [querendo dizer irmão, irmã, pessoa mais velha de
nós, e em alguns casos pai/mãe], estamos a usar o português do Brasil e de Portugal.
No português de Angola é que é com K." Mas, oh caramba!, não seria mais
inteligente explicar como a palavra surge, ao invés de andarmos a branquear as
coisas? Os portugueses e os brasileiros têm COTA, sim, com a letra C, que é
indicador estatístico (como por exemplo a cota de 30% de representação feminina
no parlamento). Agora, quando se trata de grau parentesco - e não há cá esses
avanços para trás - estamos em presença da palavra de origem BANTU, que é KOTA.
É assim em Kimbundu, é assim em Umbundu, pá! Se ao longo do processo histórico
a "cultura superior" dominante foi cega às nossas raízes, cabe-nos,
hoje que já somos (ou devíamos ser) soberanos, ensinar aspectos linguísticos na
interdisciplinaridade com a história e antropologia. Como se já não bastasse a
tendência de pronunciar o R carregado como se andássemos a expulsar uma espinha
de peixe entalada na garganta, numa incompreensível vaidade de negar a nossa
pronúncia palatina; como se já não bastasse andarmos aos sotaques mecânicos,
mesmo quando até nunca botamos o pé na Europa (e não são poucos os casos); vem
agora essa coisa de confundir influências regionais com erros de concepção ou
normatização ortográfica. Não me venham com essas leviandades de "ah, no
português do Brasil e de Portugal é com C, no nosso é que é com K", num
subtil aconselhamento do tipo "tanto faz". Quer dizer, quando convém
(como acontece com o ku-duro, as misses e o semba) evocamos orgulho ao que é
nosso. Já quando tem que ver com aspectos da nossa identidade como africanos,
reeditamos a bitola com que durante séculos fomos subjugados. Como dizemos no
bom Umbundu, "Wakambi osõi!" (Tenham mais é vergonha!)
Gociante Patissa, 4
Janeiro 2015
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