Miguel Gomes (Texto), José Alves(Fotos) - Daniel Gociante Patissa nasceu na comuna
do Monte-Belo, município do Bocoio, província de Benguela, em Dezembro de 1978.
Tem licenciatura em Linguística, especialidade de Inglês, pelo Instituto
Superior de Ciências da Educação da Universidade Katyavala Bwila (ex-Agostinho
Neto).
É membro efectivo da União dos
Escritores Angolanos. Foi o laureado do Prémio Provincial de Benguela de
Cultura e Artes 2012, na categoria de Investigação em Ciências Sociais e
Humanas, “pelo seu contributo na divulgação da língua local umbundu, na
perspectiva das tradições orais, através do conto e novas tecnologias de
informação e comunicação”.
Já editou cinco livros: Consulado do Vazio (poesia), A Última
Ouvinte (contos), Não Tem Pernas o Tempo (novela),Guardanapo de Papel (poesia), e Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava Dúvidas (contos). Para além da
actividade como escritor, Patissa é autor de dois blogues: Ombembwa Angola
(http://ombembwa.blogspot.com/) e Angola, Debates e Ideias
(http://angodebates.blogspot.com/).
Durante a conversa, Gociante Patissa
analisou o estado da comunicação social em Benguela, falou sobre a importância
das línguas angolanas e das dificuldades de afirmação num contexto dominado
pelo português. E revoltou-se com a recente perda do k, y e w.
O Gociante Patissa tem um blogue, foi radialista, tem um percurso na
comunicação social e também fora desse meio. Gosta de escrever. De que forma
analisa a história do debate de ideias na sociedade angolana?
Não sei se a maturidade é isso, mas sinto que vai havendo um decréscimo em termos de espaço para discussão de ideias. No tempo de guerra havia mais. Falo isso com algum conhecimento porque tive dois programas de rádio, que promoviam debates. No tempo de guerra discutia-se um bocadinho mais, mesmo reconhecendo que por vezes se chegava ao excesso. Agora há a preocupação em ter um discurso comedido. Por aquilo que se vai ouvindo, porque também oiço a opinião dos outros, no sentido da pluralidade, os debates promovidos pela Tv Zimbo vão se destacando pela positiva. Mas o nível de discussão de ideias ainda não é o ideal. A minha grande preocupação é que caminhamos para um processo de exclusão na comunicação social.
Não sei se a maturidade é isso, mas sinto que vai havendo um decréscimo em termos de espaço para discussão de ideias. No tempo de guerra havia mais. Falo isso com algum conhecimento porque tive dois programas de rádio, que promoviam debates. No tempo de guerra discutia-se um bocadinho mais, mesmo reconhecendo que por vezes se chegava ao excesso. Agora há a preocupação em ter um discurso comedido. Por aquilo que se vai ouvindo, porque também oiço a opinião dos outros, no sentido da pluralidade, os debates promovidos pela Tv Zimbo vão se destacando pela positiva. Mas o nível de discussão de ideias ainda não é o ideal. A minha grande preocupação é que caminhamos para um processo de exclusão na comunicação social.
Falta uma perspectiva abrangente do país e das pessoas?
Sim, e mesmo quando há debates na rádio
só vai ligar para participar quem tem Kz 900 para comprar saldo. Não sei qual é
a alternativa que devemos criar. Sou auto-didacta em termos de comunicação
social. Há muitos autores que defendem que a rádio deve reflectir a vivência da
comunidade. Não é que se defenda a banalidade. Não. Mas em termos de método
deve ser assim.
Um pouco à imagem de um velho jargão: o jornalismo também serve para dar
voz a quem não tem voz.
Naturalmente. Acho até que os canais de
telenovelas só têm o impacto que têm porque uma boa camada da população não se
sente representada nos programas oficiais.
Na sua opinião, revêem-se melhor nas historietas ficcionadas?
Não só, também precisam de se ocupar de
alguma forma. As pessoas têm de alimentar o seu imaginário. E a novela faz
isso. Tem de se fazer um trabalho mais profundo, respeitando o princípio de que
a própria comunicação é uma arte.
Os bons escritores contam histórias ricas, falam sobre as pessoas, são
humanos. Jornalismo não é só isso mas também precisa dessa perspectiva. Estamos
a falhar nalguma coisa?
É possível. Depois há também a questão
de não haver estudos de audiência. Os que existem são pequenos e mal
divulgados. Também não há concorrência no sector da comunicação social, as
linhas editoriais são fracas, às vezes dá a ideia que não faz diferença ter
bons programas. Não sei bem o que podemos fazer mas é preciso chegar um
bocadinho mais perto das pessoas. Não no sentido de apenas trazer, mas de
colher também. Costumo sempre dizer que (e agora já temos números
oficiais) vivem em Luanda 6,5 milhões de pessoas e, se calhar, num
fim-de-semana não se vendem mais de 50 mil jornais nas bancas e nas ruas da
cidade. São números mesmo muito baixos.
Que conclusão podemos tirar daqui? As pessoas não compram porque não se
revêem no que é publicado?
É preciso recuar e entender a vertente
antropológica. A população angolana é maioritariamente Bantu, com uma forte
tradição oral. Os hábitos de leitura são ainda um desafio. Se já temos um povo
que por essência tende a ler pouco, e se depois a história que se retrata é do
outro, parece haver pouca proximidade afectiva. A comunicação social tanto é
carrasco, como é a vítima também. É um círculo vicioso. Os jornais acabarão por
ser os mais prejudicados em termos comerciais. Uma vez estava a falar com um
livreiro, o senhor Grilo, que tem um espaço no Mercado de Benguela. Havia lá um
livro, uma compilação de anedotas, e perguntei: “Então os nosso livros?”. “As vendas
estão um bocadinho fracas”, respondeu. Voltei à carga: “E o livro de anedotas?”
“Também está a apanhar poeira”.
Julgo que a rádio é, actualmente, o meio mais potente, acessível e barato. Há várias razões que concorrem para essa importância. Devemos pensar melhor nas vantagens das emissões de rádio em línguas nacionais. No fundo isto está ligado à nossa história: a consolidação da caminhada, da independência e de nós próprios enquanto nação contou muito com a comunicação social, especialmente a rádio.
Julgo que a rádio é, actualmente, o meio mais potente, acessível e barato. Há várias razões que concorrem para essa importância. Devemos pensar melhor nas vantagens das emissões de rádio em línguas nacionais. No fundo isto está ligado à nossa história: a consolidação da caminhada, da independência e de nós próprios enquanto nação contou muito com a comunicação social, especialmente a rádio.
Como analisa a circulação e acesso à informação fora de Luanda?
O cenário parece ser mesmo muito pobre.
As províncias estão praticamente excluídas deste processo porque apenas têm a internet
e a voz oficial do Estado (TPA, Jornal de
Angola eRádio Nacional e afins). Os cidadãos que vivem fora de Luanda não têm acesso à
diversidade. É um quadro preocupante, tanto do ponto de vista do consumo
da informação, como da sustentabilidade da profissão de jornalista. A história
das profissões ligadas à intelectualidade tem de ser vista de dois galhos: os
que existem e os que têm de existir. Ao nível da imprensa escrita, que é onde
temos mais debilidades, a situação é complicada. Olhando para a realidade de
Benguela, tivemos o Kessongo, do jornalista Ramiro
Aleixo (actual director do semanário Agora), ou o Cruzeiro do Sul, do Ismael Mateus. Agora há apenas o intermitente Chela Press. Se olharmos para Benguela como segunda capital, é
preocupante que, tirando as rádios, não se produza mais nenhuma informação
local.
Voltamos ao velho problema: como se vai investir em algo que não tem
retorno económico?
Pois, realmente não é fácil. Se
calhar o Estado deveria pensar em subvencionar a comunicação social e reactivar
o parque industrial ligado ao sector. Todo o papel é importado. Eu colaboro com
o Jornal Cultura e, sem grande justificação,
por vezes o número de páginas é reduzido. Será que é falta de papel? É
preocupante. Houve agora um apoio ao sector da literatura mas se calhar também
temos de pensar em medidas concretas para fomentar a produção de
informação. A rádio e televisão têm outra dinâmica e enchem o coração das
pessoas mas são sectores fechados à concorrência. A visão que existe é sempre a
mesma. Isso cria uma sobrecarga noutros sectores do sociedade.
Quando há concursos públicos de emprego apenas a educação e a saúde têm vagas
massivas. E aquelas pessoas formadas em outras especialidades vão todas para o
professorado tendo, ou não, vocação. Fazem falta mais rádios e eu sei que, pelo
menos, duas pessoas de Benguela têm projectos de investimento nesse sentido. É
preciso abrir o espaço público aos cidadãos. A rádio, em muitos países
africanos, é quase uma instituição. É possível. No meio está a
virtude. É sempre preciso encontrar este elemento de equilíbrio. Às vezes eu
penso que há um pouco de receio dos excessos.
É um receio que ainda se mantém nas altas esferas políticas e militares do
país?
Certezas não tenho, mas às vezes acho
que quem vem de um quadro de guerra, como nós viemos, tendo um país como temos,
com esta diversidade étnica, linguística, e ainda algumas mágoas por resolver,
provavelmente esse receio pode passar pela cabeça de algumas pessoas – e eu
penso até que é legítimo. Mas está visto que o quadro actual também não ajuda
em nada. Mesmo até na perspectiva do exercício da cidadania. É preciso que
surjam novos operadores e diversificar a programação das rádios e televisões.
Não é saudável que o espectro continue como está. É mesmo importante trazer
diferença para o debate público. É importante estarmos sempre preparados para o
lugar do contraditório.
Mudando um pouco de assunto: como analisa o acesso à informação dentro da
tradição umbundu? Ou seja, como funciona a circulação da informação e será que
é possível fazer uma comparação desse modelo com a sociedade actual?
Uma coisa que precisamos de resolver é
que jornalismo é sempre jornalismo, independentemente da língua em que se trabalha.
Só que em Angola as coisas não funcionam assim. As línguas angolanas, na minha
opinião, estão relegadas ao formato de animação e entretenimento. O jornalista
– eu duvido se há jornalistas de línguas angolanas, tendo em conta a prática –
está a traduzir as notícias a quente. Não estou a ver como se pode fazer
jornalismo baseado na tradução, porque isso é apenas interpretação.
Antigamente, e eu tenho arquivos recolhidos, o programa de mobilização
patriótica “Angola Combatente” era tão rigoroso, e aquele trabalho era tão
importante na veiculação da luta anti-colonial, que havia escrita jornalística
em umbundu. Eu tenho alguns desses textos.
Criados pelo jornalista?
Sim, não posso jurar se foi traduzido,
ou se foram os jornalistas da época que escreveram tudo. Hoje em dia o locutor
pega no texto em português e traduz para umbundu. E depois acontecem as
deturpações. Porque lá está: a concepção é que o jornalismo tem de ser na
língua oficial, o português. Só que isso não faz sentido. Mas é assim que as
coisas acontecem. Talvez no canal Ngola Yetu seja diferente, não
conheço bem, mas fora de Luanda é o que se assiste.
Com que consequências?
Nos programas em umbundu, mesmo que
existam excessos, as coisas acabam por ser desvalorizadas. É como se não fosse
jornalismo. Se quisermos olhar para as línguas com o valor que devem ter,
devemos transportar e aplicar o mesmo rigor que se impõe ao locutor em língua
portuguesa. As línguas angolanas continuam relegadas à subalternização. Quando
vim do interior, em 1985, com sete anos, numa altura em que apenas tínhamos
acesso à TPA, aRádio Benguela emitia uma rádio-novela que tinha muita
audiência (hoje seria diferente). Mas fez-se alguma coisa. Precisamos de uma
rádio mais criativa. E, naturalmente, precisamos de mais espaço para as línguas
angolanas. O espaço disponível é muito pequeno. A Rádio
Benguela apenas tem uma hora diária da sua emissão em umbundu.
Acabou por não responder directamente à minha questão: como se processava o
acesso à informação dentro da tradição umbundu?
Acho que não havia.
Não há nenhuma ligação que se possa fazer com a realidade actual? Como é
que as pessoas acediam às coisas que se passavam na comunidade?
Na minha época a comunicação era muito
comprometida. Era propaganda política. Tínhamos apenas a rádio Vorgan, da Unita, e os programas Angola Combatente, entre outros. Era uma
mobilização orientada. Não havia debate público. No entanto, a forma como a
estrutura social estava organizada no meio rural ajudava à circulação da
informação. Por exemplo, a produção de fuba, como não há moageiras industriais,
é feita na pedra. Então as mulheres cantam. Socializam. O mesmo pode acontecer
também na lavra, na caça, no final do dia. Há ainda o ondjango, um espaço
destinado ao diálogo.
Então esse espaço pode ser considerado um espaço de troca, de partilha de
informações, é um espaço de comunicação social. Concorda?
Sem dúvida. Visto por esse lado, faz
todo o sentido. Os óbitos também assumem esse papel. Ainda recentemente um tio
dizia-me com lamento: “Hoje em dia, os jovens quando chegam a um óbito pegam
num baralho de cartas e ficam a um canto. Muitas vezes nem chegam a saber a
causa da morte do finado”. Aquela preocupação de ficar ao lado dos mais-velhos,
de ouvir as conversas, de saudar as pessoas. A saudação entre os ovimbundos é
uma instituição. A gente não diz “bom dia, como está?”. Não. A gente senta,
explica, não só de hoje mas dos dias anteriores, introduz-se o provérbio, a
parábola. Mesmo aqui, no ambiente de trabalho, percebem-se esses mecanismos.
Quando transportados para a cidade acabam por enfrentar dificuldades de
sobreviviência. O dia-a-dia das pessoas é muito diferente. No meio rural, os
agentes de socialização funcionam melhor. Como o relógio não tem grande função,
o diálogo acaba por ser o relógio. O tempo individual depende do fim do
diálogo. Na cidade, as coisas são diferentes porque as pessoas têm de cumprir
horários e têm um estilo diferente de vida.
Foi também por isso que decidiu criar um blogue em umbundu? Para divulgar e
aproveitar as novas tecnologias e dinamizar a utilização do umbundu?
Ainda bem que levanta essa questão.
Agora estou um bocadinho contente porque o contador de visitantes, que no
início era dominado pelo Brasil, Portugal e Angola, inverteu-se. Portugal
lidera as visitas. É verdade que o principal fluxo de visitantes do blogue tem
origem na diáspora. O blogue é quase uma atitude desesperada. Eu preciso de
praticar o umbundu, de manter a língua viva. Não havendo mecanismos físicos, a
pessoa usa o blogue.
Durante algum tempo o blogue era só em umbundu, depois resolveu traduzir.
Hoje é bilingue. Para si é mais fácil escrever em umbundu ou em português?
Escrever em umbundu demora muito tempo.
É mais fácil escrever em português – porque o umbundu não tem dicionário. Eu
faço traduções. Para traduzir três páginas para umbundu posso levar um dia
inteiro. O dicionário é mental. Se alguma expressão, se alguma ideia me escapa,
tenho de confirmar junto de amigos ou conhecidos. É muito trabalhoso. Como não
tenho muito tempo, faço textos curtos e bilingues. Produzir uma crónica em
umbundu não é fácil.
É difícil encontrar as palavras certas ou as ideias mais precisas?
Tenho mais dificuldades com as palavras.
Em termos socio-linguísticos tudo está por fazer. É natural que a prioridade
tenha sido a busca da paz, essas coisas todas, e não há debate sobre isso
porque estamos de acordo. Mas a parte mais triste é que continuamos com os
paradigmas que foram elementos de opressão. É uma vergonha dizer isto mas é a
realidade.
Pode dar-nos um exemplo?
Em alguns aspectos, a afirmação enquanto
elite depende de quanto tu finges não saber falar as línguas nacionais.
Nesse caso temos de lembrar que uma série de angolanos foram “assimilados”
pelo regime colonial – e para aceder a essa categoria administrativa tinham de
provar que comiam de faca e garfo, falavam e escreviam bem o português, tiveram
de renunciar às línguas angolanas e assumir a religião católica. Estas pessoas,
que depois da independência ocuparam lugares de destaque na estrutura social e
política do país, ainda têm uma grande preponderância?
É isso. Mas cinquenta anos depois, a
questão já não é o mal que fizeram às línguas angolanas. A questão é o que não
estamos a fazer por elas. Este é o problema. Agora o Ministério da
Administração do Território (MAT) está felicíssimo da vida a festejar uma nova
invenção que consiste em castrar as letras k, y e w. Eu não aceito. Eu não
acredito que isto está a ser feito por um angolano. Não acredito mesmo.
O argumento do MAT é que há um decreto (do tempo colonial) que obrigava a
escrever dessa forma. E que estão a reanalisar o caso.
Mas lá está, o ministro é formado em
Direito e os advogados ou juristas têm alguns problemas com as interpretações.
Talvez seja um defeito de formação do ministro Bornito de Sousa. Como é que um
país que se considera soberano vai recorrer a este tipo de medidas? É absurdo
pensar que tudo o que foi trazido pelos portugueses é errado. Não é por aí. Mas
é necessário criar um crivo para analisar as coisas positivas. Uma das coisas
positivas é a própria língua. Só que o português, em Angola, será sempre uma
língua infeliz enquanto representar a opressão.
Esse sentimento ainda é muito visível?
Por exemplo, os falantes de línguas
angolanas têm como que um botão. Eu ligo o meu botão como angolano e ligo o meu
botão como estrangeiro. Eu nunca vou falar Catumbela (com u) porque a palavra
não existe. As palavras evoluem, claro, mas a palavra de origem é Katombela.
Dificilmente vai ouvir um falante de umbundu a dizer Katumbela (com u). Não
existe. Mas lá está, o meu amigo Luciano Canhanga (também conhecido por
Soberano Canhanga) defende o seguinte: um país que ainda não conseguiu
recuperar os aspectos relacionados com o ensino identitário em matéria de
línguas angolanas não pode sair por aí a vender corruptelas. Algumas pessoas
que estão em postos de decisão não falam as línguas angolanas e nem sequer têm
a sensibilidade para ouvir a opinião dos outros.
O que se deve fazer neste caso?
O opressor colocou-nos todas estas
dificuldades mas eu tenho 500 anos de resistência e as nossas línguas
sobreviveram. Neste momento, o meu próprio governo está a defender leis que
também o opressor defendia. Há dias ouvi o director do semanário Expansão, Carlos Rosado de Carvalho, a dizer: “Eu tenho a minha opinião, mas sei
que no fundo, no fundo, quem vai decidir é o governo”. Nós temos a nossa
opinião de protesto. Se o MAT quiser impor até ao fim a sua vontade, o que
vamos fazer? Nada. Mas vai-nos doer. Será uma espécie de neo-colonização. Isto
dói! Em nome da legitimidade podem ser cometidos erros, como este, que é um
erro, mas se eu me acobardar e deixar de defender a minha identidade – então é
melhor deixar de existir. O bom-senso tem de prevalecer. Os nomes das
localidades são importantes porque os povos africanos, sobretudo os Bantu, não
dão nomes à toa. Todo o nome é um provérbio, uma história e através dos nomes
das localidades é possível contar a história do país, das províncias, das
cidades e das aldeias.
Também seria uma forma de aproximar as pessoas da escola e do sistema de
ensino.
Sim. Tem de haver um diálogo
intersectorial. O MAT tutela o território no seu aspecto demográfico e da
geografia, mas tem de respeitar aquilo que é a interdisciplinariedade. Há uma
vertente antropológica que o MAT não tem legitimidade para analisar. Não é da
sua competência fazer um estudo da história do país. Então tem de haver
concertação. Onde está o Ministério da Cultura que ainda não deu um murro na
mesa?
Também o Instituto de Línguas Nacionais poderia ter uma palavra a dizer.
Qual é a sua opinião em relação ao instituto? A sua função é profunda e
nobre: promover, investigar e estudar as normas, publicar gramáticas e material
de apoio. Mas parece ter poucos investigadores e poucos meios.
A minha impressão é um pouco limitada.
Penso que a sua acção em temos de visibilidade está muito centrada em Luanda.
Por outro lado, há a escassez de quadros. É preciso encontrar uma forma de
investir a fundo nas línguas angolanas. O estudo acaba sempre por ser um
processo a médio e longo prazo. E o país está a formar linguistas.
É um deles.
Mas não tenho experiência. Eu encaro a
escrita como um exercício de identidade. É quase mecânico abordar certas
questões. As questões culturais estão sempre presentes nos meus textos. Estamos
atrelados a esse tema. É preciso o país gizar um programa sério para
inventariar os quadros que tem e depois potenciá-los. Nem que tenhamos que
recorrer a cooperantes – e não podemos ter patriotismos meio-cegos quanto a
isto. Precisamos de técnicos que nos capacitem. Eles que venham.
Mas a linguística tem sido uma das áreas onde mais angolanos se têm
formado. O que fazem estas pessoas?
Isso leva-nos a outra questão e já
escrevi um artigo no Jornal Cultura sobre o assunto. Temos
de questionar o que estamos a formar. Se a universidade é, por definição, o
local certo para o exercício científico, então como é que uma universidade que
me gradua não tira proveito do produto que eu deixo enquanto tese? Começa por
aqui. É preciso rever a constituição dos conselhos científicos. É preciso
reactivar o princípio da responsabilização das pessoas pelas suas falhas. Não
pode haver denúncias de corrupção e venda de teses e não se faz nada contra.
Não há fumo sem fogo. Se há sucessivas denúncias é porque isso existe e tem de
se fazer uma investigação. E depois devíamos ter conselho científicos
suficientemente consistentes para apurar, entre as teses apresentadas, as que
têm qualidade e devem ser vertidas em livro. As teses estão nas prateleiras a
apanhar poeira. No dia a seguir à apresentação da minha tese estava a ser
contactado pelo coordenador do curso (pessoa por quem tenho muita consideração)
para dar aulas. Quer dizer que a universidade tinha essa expectativa. Mas eu
não tenho vocação para dar aulas.
E se não for a dar aulas, não há mais espaço na academia?
Como disse, não aceitei a proposta, mas
a minha condição foi: organizem um sector versado para tradução (fiz
linguística para inglês, sei português e umbundo, podia fazer algumas coisas
interessantes a este nível) e para fazer pesquisa e eu vou contribuir. Nem que
não me paguem.
Para fazer investigação?
Naturalmente. Nem todos temos vocação
para dar aulas. Então, temos outras ferramentas. A universidade não pode ser só
isso. É preciso activar o sector de investigação científica para produzirmos
textos e ensaios sobre Angola e os angolanos.
As universidades não estão a fazer investigação científica? Nesse caso, não
serão bem universidades.
Não estão mesmo. Não estão. Imagine só:
estudamos Noam Chomsky, que é um quadro que não se questiona, estudamos Stender-Petersen,
todos os nomes importantes da linguística. Mas, depois, falta-nos o conteúdo
local.
Uma ligação à terra.
Exacto. A força da gravidade parece que
não existe. Então os estudantes ficam ali encerrados em algo que não lhes toca.
As pessoas sentem a falta da tal ligação à terra e isso cria desinteresse
nos alunos?
Levantei esse tema na minha tese de
licenciatura. Comecei a aprender inglês em 1993. Mas uma das aspirações era
emigrar e encontrar melhores condições de formação e trabalho. A minha força
estava ligada a um objectivo. Dá a impressão que se a pessoa não associa a
aprendizagem a alguma coisa acaba por apenas cumprir calendário. É preciso
associar o que se aprende a uma utilidade prática. Essas falhas não são apenas
dos sistemas de ensino, estão ligadas à ideia de cidadania. Quando percebemos
que o que estamos a aprender serve para a vida tudo parece mais simples. Mas
quando isso não acontece fazemos um curso pela simples obrigação de estudar.
De certa forma estamos a falar do valor da cidadania: de participar, de ter
objectivos, de ser um agente activo no meio social?
Acho que sim, mas os contextos
influenciam a forma de pensar. Não estou a dizer que sou perfeito e que não
cometo erros graves. Mas há sempre aquele ponto em que questiono: o que estou a
fazer pela minha terra? Precisamos de espaços de discussão, de debate. E de
passar valores. Carecemos disso.
Nesse caso, como vê a participação dos jovens na política activa? É filho
de um político.
Mas sou apolítico.
Não se revê em nenhum partido?
Revejo-me na união. Não tenho cartão de
nenhum partido. Se o partido em relação ao qual a minha família está ligada
praticar um acto que viole aquilo que eu considero soberano – indigno-me.
Porque eu acho que Angola está acima de qualquer intenção político-partidária.
A acção dos partidos só faz sentido se promoverem a união. Já sofremos o
suficiente.
Já estamos nesse estágio? Os partidos contribuem para o conjunto ou estão
amarrados a agendas e projectos pessoais?
Os partidos não sofreram nada, quem
sofreu foram as pessoas. Então não podemos esperar que, de repente, as pessoas
passem uma tábua rasa sobre as suas mágoas. É pedir demais. O que se quer é que
aquelas pessoas que têm poder para dar a sua opinião e tomar decisões, se
lembrem sempre que o compromisso que temos com a pátria é promover a união. É
muito fácil dizer que vamos esquecer o que está para trás. Não vamos esquecer
nada. Vamos é aceitar que isso passou e que depois virá algo muito melhor.
Até porque o tempo da história não funciona assim. Não é possível parar
tudo e recomeçar da estaca zero.
É verdade. Isso não existe. Quando vejo
alguns jovens com argumentos radicais e a dizer “vamos voltar à guerra!”. Epá!
(risos)
Fica assustado? Como analisa esse tipo de discursos agressivos, que ainda
se mantêm entre nós?
Em todos, ou quase todos, os meus livros
entra uma personagem chamada Mbali. Mbali é o nome da minha tia. Era nas costas
dela que eu corria quando a guerra rebentava. Sempre que se ouvisse um tiro de
ataque eu subia às costas da minha tia. Se eu não consigo livrar-me dessa
personagem… A minha mãe, que já não vive, infelizmente, carregou até ao fim da
vida uma cicatriz na bochecha. No rosto. Foi um tiro. Eu estava às costas dela.
Se tivesse tido menos sorte a minha cabeça poderia ter sido atingida. Como
posso dizer que quero guerra? Não quero. Não guardo mágoas, porque na guerra
não se oferecem caramelos. A guerra é assim e a guerrilha ainda é mais brutal.
Não faz sentido apelar à guerra. Vamos ao debate de ideias, vamos condenar os
excessos, sejam de quem for (polícia, oposição, governo). Porque não há excesso
que construa.
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Grande entrevista no sentido do conteúdo abordado, respostas dadas.
Que haja mais oportunidades dessas e se possa "falar Angola".
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