Que lição tem o mundo a ensinar a quem sonha abraçar o
jornalismo? Que é por definição um exercício de coragem, os manuais estão já
fartos de postular. Que os jornalistas vêm sendo ao longo dos tempos alvos de
actos intimidatórios e por vezes letais, é um quadro com o qual não nos podemos
conformar.
É o mínimo que nos resta, antes de declararmos a falência
da humanidade, acreditar no que de mais nobre devia prevalecer no bicho homem.
Outras vias constroem mais quando é para superar diferendos, ou não fosse o
profissional de informação um ser passível de cometer erros e excessos, às
vezes também, de prejuízos irreversíveis.
A ponta do fuzil é de longe desproporcional à da caneta,
a começar mesmo pelos respectivos diâmetros. Se o ano 2014 já não chocou pouco
o mundo com a decapitação de jornalista por aquela organização escusada de
publicitar nestas linhas, 2015 parece surgir com um agoiro ainda mais macabro.
Só no sétimo dia, e em cinco minutos, perderam a vida 12 pessoas em atentado
relacionado à actividade de jornal satírico.
O jornalismo ganha, assim, pela negativa, um marco
sonante de reflexão, quanto mais não seja, por não ser desta vez (ao contrário
do temor clássico) uma represália que tenha como patrocinadores da conspiração
os poderes militar, económico e/ou político. Desta vez o mote é uma pessoa
concreta para uns, abstracta para outros. Desta vez, o argumento (com toda a
isenção que se nos exige, apesar da dor e o luto que a circunstância impõe)
recai para o encontro entre dois extremos: por um lado, o da intolerância
religiosa, com a considerada humilhação sistemática à figura do profeta Maomé,
já pelo outro, o da intolerância considerada como sendo relativa à liberdade de
imprensa.
Mais tarde ou mais cedo os suspeitos chegarão às mãos das
autoridades e pela justiça serão punidos ou então, no pior cenário, calados por um abate a tiro. Não é a primeira vez que tal colisão
fatal ocorre e seria ingenuidade acreditar que estejamos perto do fim. Mas o
que se pode para já tirar como ilação desta tragédia ao conselho de redacção do
Charlie Hebdo é que urge a massificação do debate sobre questões dos direitos
de cidadania, a integração intercultural e a noção de limites.
Olhando para alguns cartoons, sem qualquer intenção de
culpabilizar os mortos, inevitável se torna considerar o dilema entre o direito
(inalienável) à liberdade de expressão e os direitos (inalienáveis) à dignidade
e à crença. Pelos óculos da minha própria cultura e alguma herança cristã, não
se imagina ilustrar uma pessoa (seja um presidente da república, seja um
mendigo) com os órgãos genitais expostos. Será tabu, será censura? Se calhar, sim.
Devo cobrar o respeito pela minha crença aos outros? E os outros? Podem
publicitar a sua aversão à minha susceptibilidade como sendo algo normal? Teria
a sátira uma liberdade ilimitada? Só a lei de cada Estado diria. O certo mesmo
é que nenhuma violência justifica a virtude de protesto algum.
No meio de tudo isso, lamenta-se ainda o risco de piorar
a já complexa questão da cada vez mais denunciada discriminação por cidadãos
franceses de origem magrebina, vindo a, como dizia uma antiga professora minha,
“pagar o justo pelo pecador”.
Gociante Patissa, Luanda 8 Janeiro 2015
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Profundo e assertivo. Parabéns, Patissa.
Obrigado, confrade Canhanga. Aquele abraço
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