Em Outubro de 1945, um arrolamento
extraordinário estava na iminência de ocorrer na Ombala de Tchiaia, capital de
cinco aldeolas plantadas no cimo de montanhas vizinhas, que mais se pareciam
com dedos de uma mão tentando tocar o céu: Pedreira, Kandongo, Samangula, Kawio
e Tchiaia, hoje pertencentes à comuna do Sambo, município da Tchikala
Tcholoanga, na província do Huambo.
Ia ao rubro a ansiedade na Ombala, como de
costume em véspera de arrolamento. Cada família procurava catanar a idade dos
filhos, o que contribuiria na diminuição dos impostos, o mesmo acontecendo com
o número de animais domésticos. Menos posses, melhor. O que restava fazer só
dependia da visita do Chefe do Concelho, branco português conhecido por
observar ao mínimo pormenor até mesmo os pelos de um porco. Andava intrigado o
Chefe do Concelho com a notícia do registo de dezassete óbitos em oito meses. E
de nada o convenceram as justificações das autoridades, que atribuíam tal azar
ao aparecimento do dragão, que fora visto por poucos sobrevoando o caminho do
cemitério.
Era fenómeno raríssimo no meio rural, mas
havia na aldeia uma mulher (chamada Kutala) em condições de dar conta do recado
em matérias de recenseamento. Fora logo cooptada para o posto de
secretária-tradutora-dactilógrafa da Ombala. Despachava diretamente o
expediente com o Soba.
Nascida doentia, Kutala vivera a sua
adolescência sob os cuidados de missionárias, tendo com elas aprendido as
práticas de dactilografia, costura, doméstica e o domínio da gramática
portuguesa. Mas com o desabrochar dos seios e o surgimento de sonhos eróticos —
que ela não sabia se gostava ou se odiava —, Kutala convenceu-se de não ter
vocação para madre, optando por abandonar a residência. Não era de ser
pretendida por qualquer um, dada a sua capacidade de análise crítica, embora
não fosse cheia de «não me toques».
Mbocoio, o felizardo marido da Kutala, não
gostava nada da ideia de se trabalhar com o Soba — apesar de iletrado, o Soba
era muito astuto, carismático e, dir-se-ia até, bonito. Mas foi aconselhado
pelos amigos a ver o lado positivo da coisa. Ser marido da mulher mais
influente no poder dar-lhe-ia um estatuto visível, uma gratificação até acima
do razoável. Lá o homem aceitou, mas não sem antes propor uma das irmãs da
esposa para auxiliar na lida doméstica e cuidar do Velho, o bebé do casal,
enquanto a mulher fosse trabalhar — Velho era a alcunha do bebé, uma solução
arranjada para evitar o desgaste do sagrado nome do avô paterno, que era seu
chará.
A verdade é que também não havia muito a
fazer para impedir a esposa de desempenhar tão decisivo cargo. A vontade dele
não podia estar acima do poder, fosse político, administrativo ou real. Mbocoio
era uma pessoa singular na Ombala, não impressionando ninguém com o seu corpo
atlético, peito de almofada e altura de mercenário. Era vagaroso a reagir e
cauteloso a decidir, se calhar por ser gago.
Ia o emprego no seu primeiro mês. Faltavam
dois dias para o pagamento do ordenado, quando a mulher chegou à casa e disse
ao marido:
— Ó pai do Velho, tem uma coisa para te
falar.
— Sim…?
— O Soba disse para o outro, ainda, deixar
de passar a mão na minha cara. É para evitar espinhos, porque o Chefe do
Concelho está para vir… e a cara é importante.
— Como assim?
— Bom, ele me falou que, como
escriturária-dactilógrafa da regedoria, a minha cara tem que brilhar como bebé.
E mão de homem faz borbulhas.
— Tá bem.
Não gostou nada do recado, mas suportou.
Por mais que lhe custasse travar a mão toda a vez que ela teimasse em fazer um
carinho involuntário à esposa, sujeitou-se durante semanas. Era coisa
passageira, acreditava. Mas a visita nunca mais acontecia e, para a sua
surpresa, surgia a mulher com mais um recado do Soba:
— O Soba me falou, fala no pai do Velho
ainda para deixar de me dormir em cima. — respirou fundo para buscar a coragem
de dizer o resto. — Falou a parte de sentar está a ficar rasa e as mamas estão
a ficar grande.
— Acho que sim…
Contrariado, Mbocoio concordou. Como se
não bastasse a proibição de tocar o rosto da mulher, vinha agora mais essa de
fazer amor só de lado. Sujeitou-se, todavia, outra vez. Mais um sacrifício pela
subida da mulher no trabalho. Seria passageiro porque, pelo tempo, a visita
estaria perto de acontecer, acreditava o homem. Volvidos três penosos meses,
era ainda incerta a chegada do Chefe do Concelho. Tudo indicava que ficaria
para o ano seguinte. Mbocoio começava a acreditar que as limitações do quarto
acabariam brevemente.
Ansioso. Nutrido pela enorme esperança.
Mas a esperança é, às vezes, a mais cruel das ilusões. Desiludido, Mbocoio veio
perder a cabeça perante mais um impasse:
— Ó pai do Velho — disse outra vez a
mulher —, o Soba me apanhou a sonegar e me falou que isso tudo é cansaço de
fazer as coisas de lado. Falou então para o pai do Velho pensar bem, ficar
ainda uns dias sem fazer nada…
— Mas é para chegar aonde com essa merda
de recados? — interrompeu, colérico, Mbocoio. — Porra! Até aonde vai o poder
desta merda do Soba?
Muito gostaria a mulher que o marido
falasse mais baixo, ela que já não se sentia à vontade em abordar coisas do
quarto por causa da sua formação religiosa. Temia que os berros acordassem a
vizinhança, que era basicamente composta por familiares do marido, o que seria
um escândalo.
— Vamos falar no pescoço. — rogou,
impotente. — A essa hora, a aldeia está a dormir.
— Mas, para dormir com a minha mulher, ele
é que tem que autorizar? Merda, pá!
— Você vai chamar de merda a autoridade?
— Merda mesmo. É isso! Merda, merda
d’homem! Ele pensa que é patrão até aonde?
— Mas ele não é só meu patrão. É também
regedor da Ombala.
— Safótalá, que eu mando lixar! Estou na
minha casa!
— Mas ele também já viu muita coisa nesta vida. É mais velho, é a experiência dele.
— Mas ele também já viu muita coisa nesta vida. É mais velho, é a experiência dele.
— Ele mazé te quere…
— CHEGA! Olha que o nervo só te leva, não
te traz!
— Chega nada! Aqui na minha casa,
autoridade sou eu!
Pensou a mulher que, pelo desabafo do
outro, o problema estivesse resolvido. Errado. Mbocoio saiu disparado, fora de
hora, sujeito a todos os perigos, uma vez que a aldeia costumava ser invadida
por onças e hienas que caçavam cabritos e porcos vadios. Podia também ser
atacado por jibóias, isso, sem esquecer que naquele ano fora visto um dragão.
Tudo isso punha a pobre esposa angustiada, ela que mal podia imaginar o que
faria um gago impulsivo.
Feito bicho, Mbocoio trespassou o palácio
do Soba, que enganava a insónia consultando os antepassados. Este pôs-se em pé em
jeito de respeito, como aliás fazia sempre que recebesse visitas, por muito
estranha que julgasse uma invasão do seu território quando a noite dava lugar à
madrugada. Mas foi tudo tão rápido, que não teve tempo para saudar o visitante.
Mbocoio fitou os olhos do Soba com toda a raiva que lhe subira à cabeça. E
acertou o suposto rival com dois violentos socos da cara, até vê-lo cair para o
chão como saco de múcua, embora calado como uma ovelha, já que homem grande não
chora. Possuído pelo impulso, Mbocoio espancou o Soba, como se de pessoa
qualquer se tratasse, mas rapidamente caiu em si. Não evitou a comiseração ao
ver a mais alta autoridade da aldeia levantar-se do chão, sacudindo da calça a
sujidade, com os lábios a verterem sangue.
— Ndifila nye?(1)
Mbocoio ficou estático, articulações
bloqueadas pelo susto. Cometera o mais grave erro da história do seu povo. Era
o primeiro a agredir um Soba, e o que era pior, ao ponto de partir metade do
dente incisivo esquerdo. O Soba convocou os mais próximos conselheiros para uma
reunião de emergência. A assembleia visava evitar que o Soba, figura que só participa
dos contenciosos como juiz, aparecesse como vítima, o que fragilizaria a sua
soberania. Decisão: guardar o segredo bem fechado, dando a Mbocoio o castigo de
ser o tocador de sino da Ombala por tempo indeterminado, sendo inclusive
subordinado da esposa.
Mbocoio, que temia castigo pior dos deuses
pela agressão ao soberano, aceitou sem resistência. Quando a força toda que
resta no ser humano só chega para chorar e implorar pela vida, todas as
valentias e preconceitos reduzem-se à cinza. Mbocoio era incapaz até de se
lembrar do próprio nome.
Mas como o Soba não podia surpreender a
aldeia com um dente meio partido, foi feita uma operação de estética chamada
omeyeko, aplicando um «chanfro em V» aos dois dentes incisivos como símbolo de
nobreza.
Agora, com o doce sabor da reviravolta, o
Soba até parecia ter ganho na altura. Abandonou a sala de reuniões e, sem ir
muito além da porta, olhou à sua volta, sardónico. Mandou para o ar o fumo do
seu malcheiroso cachimbo, como que em gesto de charme, e voltou a entrar,
deixando nas mãos dos conselheiros a preocupação de propagar o fenómeno.
Contou-se que tudo acontecera durante um
sonho, decifrado como recado dos antepassados: já não bastava a circuncisão
para a honra masculina. E como o que vem do Soba é exemplo, surgiu uma nova
profissão: a de limador de dentes. Foi então que se juntou omeyeko ao ritual da
circuncisão, de tal modo que, entre a vaidade e a tradição, sorrir cerrando os
dentes passou a ser documento em Tchiaia.
São os segredos e os sacrifícios que fazem
o poder, portanto este não seria o primeiro nem o último pela revitalização da
mística da aldeia. Mbocoio continuou pouco valorizado no seu posto de tocador
de sino.
____________
(1) Que mal fiz para me matares?
Gociante Patissa, in «A Última
Ouvinte», 2010, p. 27. União dos Escritores Angolanos, 1ª Edição, Luanda (versão
com base no novo acordo ortográfico)
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