«— Tá ver bem, chefe? — Sapalo assegurava o
contacto visual, de sorriso a destacar a brancura dos dentes. A testa tinha a
cor da barba, tal era a graxa. — Acho que preciso de uma consulta, um dia. — já
éramos dois a achar que sim, mas calei ao que seria o motivo, aguardando que
completasse a ideia. — Oiço muito a chuva.
"Muito" queria dizer demasiado. Dava que pensar. A estiagem deixara de ser notícia, esgotadas as esperanças de honrar o crédito de campanha. Pássaros e roedores tinham-se ocupado do milho da primeira sementeira, pelo sol esterilizada. A outra metade, oh impotência, mal dava para cobrir as mesas de funji até à estação de chuvas seguinte, no curto defeso entre Maio e Setembro. Entretanto, Sapalo, só mesmo ele, segredava-me que ouvia o som da chuva, bastando-lhe fechar os olhos.
No compasso de espera do Sapalo, que fumava o seu cigarro, debatia minhas noções, sentado, em silêncio, no carro. No outro dia, um, aquele sim quase louco — digo quase porque, com inusitado sentido de liberdade —, quebrou uma qualquer garrafa e com o mesmo automatismo atingiu uma testa, a dele próprio, para em jacto de sangue deixar sua marca sobre o passeio de cimento. Não foi visto durante horas. Surgiu depois com penso sobre a sutura, pediu cinquenta kwanzas para comprar pão, mas logo a seguir chateou-se quando lhe foi dado o pão no lugar dos cinquenta kwanzas. Certamente sabia que por aquele valor compraria mais de um. Passam relativamente muitos por este passeio. E até faz sentido, é a rua dos bancos, da clínica e dos contentores de lixo. É de loucos a avenida do quase, do sonho por rápidas melhoras, da dor.»
In «Fátussengóla, O Homem do Rádio que Espalhava
Dúvidas» (pág. 83), meu livro de contos com previsão de lançamento em Novembro.
Falta pouco.
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