Janeiro de 2010. A chegada a
Washington DC começou com pequenos percalços no aeroporto de Dulles. Na
verdade, os percalços tinham começado bem antes, no voo de ligação em Newark,
onde o pessoal de segurança se alarmou pelo tamanho da pasta de dentes que
trazia de Lisboa estar acima do permitido, em bagagem de mão. A presença do
protocolo do Departamento de Estado (um senhor simpático de casaco azul) ajudou
a desdramatizar a coisa, pois um mês antes tinha sido abortada uma tentativa bombista
de Mutallab, um jovem nigeriano, de pele escura e desacompanhado, como eu.
Tive a oportunidade (como poucos a
quem calha anualmente) de ser indicado pela embaixada dos EUA a representar
Angola no programa de Líderes Juvenis Visitantes Internacionais, durante 28
dias. Para além da troca de experiências com várias organizações, houve visitas
a uma série de monumentos e sítios, em quatro estados: Washington DC,
Portland-Oregon, Salt Lake-Utah e Miami-Florida.
Em Washignton DC, ressalta-se o
arquipélago de melancolias que são os memoriais dos soldados mortos nas
guerras. Vindos de todos os cantos e rectas do mundo, América é uma placa
giratória de turistas, que não resistem, quando lá chegam, à maresia do lugar.
O nosso grupo era formado por vinte elementos, de países diferentes. A visita é
guiada por jovens voluntários, que emprestam a sua emoção às narrações. Certo
dia, após visita ao museu da aviação, um vietnamita desabafou: «Os americanos
lamentam e choram a morte de seus soldados, mas lá onde foram, que não é seu
território, mataram muito mais do que o dobro do que se queixam». Tocou-me,
confesso, embora seja uma verdade à vista.
Voltando a Dulles, é um enorme
aeroporto com dois pisos para saída, um reservado a viaturas particulares e
outro para serviços de táxi. Fui logo sair trocando as opções. Perguntando a
esse e àquele, lá consegui enfiar-me num Cab,
como são designados os táxis personalizados de cor amarelada. Era africano
o motorista, somali de vinte e cinco anos, que dizia estar nos EUA pela via do sorteio
Green Card, já lá iam dois anos.
Pensava buscar a família, à medida que se estabilizasse. Trinta dólares foi a
tarifa, mas acabei dando cinquenta, ficando os vinte adicionais a dever-se à satisfação
pela africanidade com que me abordou, durante meia hora de estrada.
Na recepção, aguardava por mim um
envelope com o mapa da cidade (como se o meu sentido de orientação fosse lá grande
coisa) e a chave da porta em forma de cartão multi-caixa, o famoso formato Smart Card. Estavam também os três
tradutores (mais guias do que tradutores a bem dizer, uma vez que dominar a
língua inglesa é outro pressuposto básico de elegibilidade no Programa de
Visitantes Internacionais, iniciativa diplomática que, desde o ano de 1940, dá
a conhecer os EUA abrindo portas a visitantes de vários países do mundo, cobrindo
as despesas com alojamento e passagens. O meu grupo era de líderes de
organizações ligadas à promoção da cidadania e direitos humanos).
Fiquei triste, por ter calhado com o
quarto oitocentos. Não tenho a mínima atracção por elevadores, ao mesmo tempo
que caminhar oito andares vezes sem conta, ao dia, é uma maçada sem
precedentes. A minha decisão de aguentar tais «peregrinações» teve de ser
abortada. Era casmurrice humanamente insustentável. E foi, pois, nos elevadores
que observei a multiplicidade de choques culturais e laboratórios sociológicos.
Ia saudando em cada entrada para o
elevador, como faria aqui, mas à medida que fossem entrando outras almas, notei
que não esboçavam o mínimo gesto de saudação (justiça seja feita a raras
excepções para legitimar a regra). Acomodavam-se e olhavam para o lado.
Estranho, pensei. O que vem a seguir? Essa gente faz monumento ao desconhecido?
Como posso encontrar alguém num lugar tão restrito, como um elevador, e
simplesmente fingir que não estou ali? Sim, porque saúdo para dizer que existo,
como pessoa, como ser social. O outro lado faz o mesmo, e celebramos o milagre
da vida, por muito breve que seja um sorriso, um aceno, ou um simples olá.
«I don't think I should say hello to the people that I don't know» (não acho que seja obrigação saudar
pessoas que não conheço), disse certa vez, no contexto angolano, alguém de
nacionalidade (e cultura) americana. Não lhe prestei grande atenção cá, como é
óbvio. Agora que estava lá, as mesmas palavras tinham sentido bem diferente.
Mas depois repreendi-me a mim mesmo,
por essa análise tácita, em função da construção social, do meu sistema de
valores, sobre a leitura de uma realidade geográfica e culturalmente distante. O
que será que representa para a sociedade americana «o desconhecido»? Um ser
inerte, uma fonte de medo, uma indiferença em movimento?
Benguela, 24 Novembro 2012
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