Podendo
soar paradoxal, lá está, presos que andamos a objectivismos e metodismos, ao
contrário da essência aparente das coisas, são os detalhes que fazem a vida.
Imaginemos
que, dando provimento à já crónica indolência ao fogão, me desloco ao Café da
Cidade atrás de um copo de leite com bolinho. O que não seria de todo justo,
porque redutor, era colocar os mantimentos no centro, ignorando todo um processo
à volta durante a meia hora que se permanece na esplanada. Então, e a conversa
em tom alto da mesa ao lado - geralmente sobre desporto e política -, os
veículos que, como os transeuntes, volta e meia transgridem as regras de
trânsito, a empatia das meninas que me atendem, o amarelo da banana sobre a
cabeça da zungueira, o nariz que não devo torcer pelo cigarro alheio, uma vez
estar na zona de fumadores, tudo isso é secundário? E sem dar por isso, até já
conhecemos o rosto do guarda, o pregão do mendigo.
Hoje,
a conversa avulsa girava em torno da entrevista televisiva do Chefe de Estado à
SIC Internacional, com os imagináveis prós e contras, nem sempre bem fundamentados,
entrevista que aliás não vi, não tendo a parabólica instalada em casa, muito
menos electricidade. Retive a exclamação de um cidadão português, na casa dos 50
anos: “O homem é muito inteligente, pá! Sereno,
descontraído, e domina o idioma perfeitamente!” Ora, numa entrevista marcada
pelas agendas social e política, aquela reacção é, quiçá, inesperada. Mas não
será o marketing uma colecção de detalhes?!
Já
bem no final do manjar, minha atenção foi desviada do papo para registar algo melhor.
Quatro jovens, classe média alta, digamos assim, um deles com linda bebé ao
colo e outro com o braço engessado, vinham em nossa direcção. O que faziam? Estando
um deles recuperado do tratamento ortopédico por lesões que se imaginam de
acidente de motorizada, fizeram tenção de doar discretamente a sua cadeira de
rodas a um rapaz, paralítico de membros inferiores, que passa o dia a pedir
trocos à porta da loja.
Os
limpadores de viaturas, as meninas da loja, o segurança, clientes e curiosos
juntaram-se para o pequeno, mas histórico acontecimento. Meu Amor, como é tratado pelas meninas o beneficiário, não se
mostrou entusiasmado. “Não queres?”,
indagou um dos doadores. “Há milhares de
pessoas que gostariam de ganhar isso”, repreendeu uma menina da loja. “Pede obrigado”, disse o guarda. “Que ao mesmo sorrisses, Meu Amor!”, insistiu
outra. Entretanto, só depois de os benfeitores se retirarem (sem dizerem como
se chamavam) é que Meu Amor disse a trejeito: “Isso cansa!” Mas logo veio a réplica da assistência: “Cansa mais andar de se arrastar no chão, ou
no carrinho?!"
A
reacção de Meu Amor lembrou-me o
calor dos debates num seminário em 2005 sobre a abordagem baseada no direito contra
a baseada na necessidade. Defendia-se que a primeira é concebida levando em
consideração a opinião e vontade do beneficiário, ao passo que, na segunda, o
doador presume com base na sua própria crença do necessário. Partilharam-se, na
ocasião, exemplos de instituições que construíram latrinas para comunidades de
deslocados, desconhecendo que, em alguns povos Bantu, os anciãos mantêm tabu
sobre suas necessidades, defecando o mais distante possível de casa.
À oferta desinteressada de hoje, sim, “que
ao mesmo sorrisses, Meu Amor!”
Gociante Patissa, Benguela-Lobito, 8 Junho 2013
Gociante Patissa, Benguela-Lobito, 8 Junho 2013
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