quinta-feira, 27 de junho de 2013

Crónica: A lenda da sereia, uma infinita narrativa de amor

Se bem me lembro da versão contada certa vez pelo professor de epistemologia no curso de sociologia em uma universidade cá de Benguela que acabei não concluindo, a sereia (ou menina do mar) nasceu dos pescadores. Até aqui, parece não haver novidade na descoberta, tendo em conta que, pela natureza da sua actividade, só podem estar ligados a tudo o que seja ao mar relacionado. Contudo, a coisa vai muito além do simples pescar. A sereia é uma infinita narrativa de amor entre homem e mulher, vista numa dimensão de transcendência.

Antes de avançar, permitam-me partilhar uma dúvida. Haverá em Umbundu vocábulo para sereia, como seria “kianda” na língua Kimbundu? Justificará a existência da palavra “kianda” o senso-comum segundo o qual a essência do território de Luanda é o mar, ao contrário da também dita “Nação Ovimbundu”, cuja capital era o planalto centro? É consabido que o Umbundu e o Kimbundu são de inevitável diálogo intercultural, ou não tivessem ambas a raiz Bantu.

Retornando à lenda, dizia que o mito da sereia simbolizava a transcendência do amor entre homem e mulher e a noção dialéctica de felicidade no lar. Talvez por lhes ser difícil perceber como pode um pescador, que tem por habilidade primária saber nadar, morrer por afogamento e ainda por cima o corpo não ser encontrado. A explicação que encontravam era recorrente: o homem foi conquistado pela menina do mar, que tem por hábito não devolver maridos alheios.

O retrato dessa figura que é certamente imaginária, apesar do dogma que retira do questionável qualquer relato sobre o conhecimento ou experiência dos mais-velhos, não escapa aos estereótipos de beleza e atracção feminina. Ou seja, é uma mulher acima de perfeita, muito carinhosa, um manancial de relações humanas. Resumindo, é o oposto do que os homens não encontram de bom em suas esposas, ou do mal que julgam haver nestas. 

O que a lenda não diz é se esse casal híbrido pode, ou não, ter filhos, e se, podendo, os rebentos nascem com a barbatana do lado da mãe, ou pernas mesmo, como o pai. A pergunta de retórica seria a seguinte: e se as mulheres procurassem um menino do mar também? Bem, até onde se sabe, a sereia é sempre solteira, além de que não é expectável que mulheres tomem comando de detalhes mais complexos da actividade de pesca, como seria ir jogar a rede ou desembaraçá-la no fundo do mar.

Nesta ordem de ideias, as esposas dos pescadores conviviam com o risco inerente à actividade dos maridos, não tanto pela sinuosidade das marés ou ventos, mas pela promissora felicidade de enamorar uma menina do mar e nunca mais o regresso à terra.

O da foto é o primo meu mergulhador que penso levar a tribunal brevemente por me ter prometido uma sereia há quase um mês, sem se dignar em trazê-la já para a casa. Bem, se você se interessar por uma sereia, é bom lembrar que o texto é apenas uma versão.
Gociante Patissa, Restinga do Lobito, 27 Junho 2013
Share:

2 Deixe o seu comentário:

Val Du disse...

Sensacional, Patissa.

Um abraço.:)

Angola Debates e Ideias- G. Patissa disse...

Valeu, querida Lita. Um bom dia para si e família

A Voz do Olho Podcast

[áudio]: Académicos Gociante Patissa e Lubuatu discutem Literatura Oral na Rádio Cultura Angola 2022

TV-ANGODEBATES (novidades 2022)

Puxa Palavra com João Carrascoza e Gociante Patissa (escritores) Brasil e Angola

MAAN - Textualidades com o escritor angolano Gociante Patissa

Gociante Patissa improvisando "Tchiungue", de Joaquim Viola, clássico da língua umbundu

Escritor angolano GOCIANTE PATISSA entrevistado em língua UMBUNDU na TV estatal 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre AUTARQUIAS em língua Umbundu, TPA 2019

Escritor angolano Gociante Patissa sobre O VALOR DO PROVÉRBIO em língua Umbundu, TPA 2019

Lançamento Luanda O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, livro contos Gociante Patissa, Embaixada Portugal2019

Voz da América: Angola do oportunismo’’ e riqueza do campo retratadas em livro de contos

Lançamento em Benguela livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES de Gociante Patissa TPA 2018

Vídeo | escritor Gociante Patissa na 2ª FLIPELÓ 2018, Brasil. Entrevista pelo poeta Salgado Maranhão

Vídeo | Sexto Sentido TV Zimbo com o escritor Gociante Patissa, 2015

Vídeo | Gociante Patissa fala Umbundu no final da entrevista à TV Zimbo programa Fair Play 2014

Vídeo | Entrevista no programa Hora Quente, TPA2, com o escritor Gociante Patissa

Vídeo | Lançamento do livro A ÚLTIMA OUVINTE,2010

Vídeo | Gociante Patissa entrevistado pela TPA sobre Consulado do Vazio, 2009

Publicações arquivadas